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“145” ou “disque-amizade”

“145” ou “disque-amizade”

Embora houvesse a eventual participação de pretensos monitores ou mediadores de grupo nas rudimentares “salas de bate-papo”, o fato é que não havia nem controle nem censura alguma

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16-10-2024 às 09h:19

Henrique German*

Antes, muito antes que houvesse a rede mundial de computadores difundida entre nós, ao menos não aberta e acessível ao público em geral conforme hoje conhecida, no tempo em que uma mera linha telefônica fixa em casa era luxo, existiu um serviço de nome sugestivo e de dupla vertente, tanto numérica quanto alfabética: “145” ou “disque-amizade”.

De fato, quando não eram ainda as comunicações instantâneas e fáceis, quando simplesmente não havia sofisticados aparelhos portáteis, velozes e altamente capazes de virtualmente tudo, era quase impossível sequer imaginar a possibilidade de uma reunião telefônica múltipla e simultânea entre várias pessoas em lugares distintos. A velha e boa Telemig porém, sempre pioneira e eficiente, cuidou de criar o serviço 145, que permitia o congraçamento entre até cinco pessoas ao mesmo tempo, vinte e quatro horas por dia, todos os dias da semana, em encontros virtuais de vozes empostadas, ao custo de um punhado de centavos de então.

Tratam-se aqui dos anos oitenta, época em que o serviço 145 se notabilizou sobretudo no meio adolescente e jovem belo-horizontino, firmando-se como plataforma de encontros concretos e pessoais, a partir das interações iniciais via telefone. Em verdade, o serviço uniu a cidade inteira, mesclando as diversas regiões, promovendo a aproximação e o conhecimento mútuo de jovens que, de outra maneira, provavelmente não se teriam avizinhado. O intercâmbio era universal: de classes sociais, de raças, de gêneros e de tribos urbanas.

Embora houvesse a eventual participação de pretensos monitores ou mediadores de grupo nas rudimentares “salas de bate-papo”, o fato é que não havia nem controle nem censura alguma, de modo que as conversas iam do afável e educado aos mais terríveis abusos de linguagem, sendo de observar-se que, naqueles idos, não existia o conceito de “politicamente correto ou aceitável”. De conversa mole em conversa mole, de xingamento em xingamento, de longos assuntos a curtas intervenções, de piadas rasas a temas sérios, a intenção da imensa maioria era sempre a mesma e única: obter o número do telefone da pessoa de interesse e falar com ela privadamente, de forma a dar vazão à lascívia permanentemente latente, mas reprimida em público. Sim, na verdade, no fundo era sempre esse o grande objetivo de todos os participantes do 145: chegar a conhecer pessoalmente aquela pela qual se tivesse interessado na linha telefônica coletiva. Melhor dizendo, aquela ou aquele, naturalmente...

Durante o dia, digamos que as ligações fossem de cunho mais lúdico e inocente; à noite, contudo, é lícito afirmar que as coisas mudavam radicalmente, especialmente nas madrugadas, quando o 145 se tornava, por definição, território aberto e sem lei.

Com os números dos telefones pessoais em mãos, obtidos normalmente à custa de muito esforço e de litros de saliva gasta, partia-se à conquista de novo terreno, aquele do encontro presencial. Raras eram as vezes em que se conseguia marcar na residência da pessoa; na maior parte das ocasiões, estabelecia-se campo neutro para o primeiro encontro, sendo essa a única medida reveladora de alguma preocupação com a segurança pessoal.

Na realidade, tenho para mim que não havia propriamente cuidados maiores com a segurança; as pessoas, completos estranhos, marcavam os encontros em lugares públicos, dizendo de antemão como se vestiriam, a fim de verem os possíveis parceiros, ficando ou fugindo conforme se apresentassem as oportunidades. A bem da verdade, não poucas eram as vezes em que as descrições pessoais feitas ao telefone em nada correspondiam à dura realidade nua e crua da mais abjeta feiúra, exposta desenvolta e despudoradamente ao vivo e em cores.  Era então o momento de bater depressa em retirada.

Eu mesmo, em várias das ocasiões em que me envolvi com gente do 145, disse que estaria vestido de um jeito, mas me apresentava de outro, para não ser reconhecido de pronto e, sendo o caso, poder avaliar com calma a incauta. Muitas vezes, literalmente corri em fuga, outras tantas fiquei e fui feliz...

Bons tempos de saudosa memória, passados já quarenta anos! Hoje, com a modernidade dos celulares, dos filmes, das fotos íntimas e dos aplicativos próprios, de uso rápido e fácil, muito se ganhou no campo das conquistas e das relações amorosas às cegas; bem, não se dão mais às cegas afinal...

Sim, muito se ganhou, sem dúvida, todavia, muito também se perdeu.

* Henrique German é promotor de justiça aposentado e autor de mais de duas dezenas de livros de literatura

 

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