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O sabichão

Ele não sabe que a erudição deve ser usada como um relógio de bolso, que só é sacado quando a gente precisa saber as horas ou quando alguém nos pergunta por elas.

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13-10-2024 às 09h:39

Marcelo Galuppo[1]

                        Ninguém gosta de sabichões, que consideram seu saber mais útil do que de fato é e que, pensando ser mais sábios do que são, revelam-se tolos, que não conseguem nem ficar em silêncio, nem dizer algo de oportuno.

                       Na maioria das vezes, o sabichão possui um saber incompleto e inócuo, e não percebe seu ridículo ao corrigir os outros publicamente (porque o sabichão não sabe fazê-lo em privado: a audiência completa seu prazer). Plutarco, no século I, já alertava que sabichões pensam conhecer demais, mas desconhecem o básico da convivência humana, expresso no conselho bíblico do livro de Provérbios (“Calado, até o idiota passa por sábio”) e atualizado por Abraham Lincoln (“É melhor ficar calado, e pensarem que você é um idiota, do que falar, e eles terem certeza”). A novidade agora é que a internet faz com que eles procriem como coelhos

                      Sempre houve dois tipos de sabichões. Um é o sabichão prático, que pensa saber fazer algo que ninguém mais sabe, mas que, no fundo, é inteiramente inútil ou disfuncional. Sem pedirmos sua ajuda, ele interrompe o que estamos fazendo e passa a nos ensinar a maneira correta de fazer aquilo que já sabíamos fazer de outro modo. Ele não sabe que, na vida cotidiana, o jeito certo de fazer uma coisa é o jeito que funciona melhor para a gente. Um desses tentou ensinar-me o modo certo de abrir uma caixa de sanduíche da McDonald’s, fazendo uma lambança maior do que a minha (e quem me conhece sabe que não é pouca).

                     Outro é o sabichão teórico, que sempre corrige o que dizemos, gente que sabe que a palavra rúbrica não existe, ou que sua mãe não estava se sentindo meia cansada, mas que não se contenta em sabê-lo: ele se atribuiu a missão de compensar a deficiência da formação escolar brasileira. Ele não sabe que a erudição deve ser usada como um relógio de bolso, que só é sacado quando a gente precisa saber as horas ou quando alguém nos pergunta por elas. Já houve, por exemplo, gente que quis ensinar-me a maneira correta de pronunciar meu sobrenome.

                      Não confunda o sabichão com o professor. No caso deste, queremos que ele nos corrija, e seu conhecimento não é oferecido com a aparência de generosidade daquele que de fato não a possui, mas como serviço prestado mediante pagamento para nos ensinar algo.

                      Mas agora há um terceiro tipo de sabichão, o pior de todos, o mais execrável, o mais nocivo e, pasme, o mais inevitável deles: o corretor ortográfico. Os outros dois podem ser solenemente ignorados (como no caso do sabichão que, segundo Plutarco, tentava ensinar filosofia para Aristóteles e, depois de muito dizer, perguntou: “Estou falando demais na sua cabeça?”, ao que o filósofo respondeu: “Não se preocupe, eu não estava prestando atenção”). Contra o corretor ortográfico, não há nada que se possa fazer. Em primeiro lugar, porque não podemos deixar de usá-lo, já que não queremos que nosso texto seja corrigido por outros sabichões, de pele e osso. Em segundo lugar, porque, ainda que insistamos em grafar uma palavra de um modo, ele também insistirá que aquela grafia está errada (por exemplo, na coluna do dia 28/09, por mais que eu escrevesse café espresso, o corretor insistia em alterar para café expresso). Em terceiro lugar porque, por mais atentos que sejamos ao rever suas sugestões, algo sempre nos escapará (e pérolas, como as seguintes, surgem do nada: um amigo quis postar em um grupo de Whatsapp “Querida Fulana, beijos e abraços!”, e o corretor mudou para “Queria a fulana, beijos e abraços!”. Outro, referindo-se a meu novo livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, escreveu que este era meu “livro mais decente”. Queria dizer recente, espero). É uma batalha inglória, portanto, lutar contra ele. Na maioria das vezes, somos vencidos pelo cansaço, como agora: resta-me apenas utilizar o ccoretor ortográfico do Windows e entregar este texto ao editor

                     Ninguém gosta de sabichões, que consideram seu saber mais útil do que de fato é e que, pensando ser mais sábios do que são, revelam-se tolos, que não conseguem nem ficar em silêncio, nem dizer algo de oportuno.

                      Na maioria das vezes, o sabichão possui um saber incompleto e inócuo, e não percebe seu ridículo ao corrigir os outros publicamente (porque o sabichão não sabe fazê-lo em privado: a audiência completa seu prazer). Plutarco, no século I, já alertava que sabichões pensam conhecer demais, mas desconhecem o básico da convivência humana, expresso no conselho bíblico do livro de Provérbios (“Calado, até o idiota passa por sábio”) e atualizado por Abraham Lincoln (“É melhor ficar calado, e pensarem que você é um idiota, do que falar, e eles terem certeza”). A novidade agora é que a internet faz com que eles procriem como coelhos.

                      Sempre houve dois tipos de sabichões. Um é o sabichão prático, que pensa saber fazer algo que ninguém mais sabe, mas que, no fundo, é inteiramente inútil ou disfuncional. Sem pedirmos sua ajuda, ele interrompe o que estamos fazendo e passa a nos ensinar a maneira correta de fazer aquilo que já sabíamos fazer de outro modo. Ele não sabe que, na vida cotidiana, o jeito certo de fazer uma coisa é o jeito que funciona melhor para a gente. Um desses tentou ensinar-me o modo certo de abrir uma caixa de sanduíche da McDonald’s, fazendo uma lambança maior do que a minha (e quem me conhece sabe que não é pouca).

                     Outro é o sabichão teórico, que sempre corrige o que dizemos, gente que sabe que a palavra rúbrica não existe, ou que sua mãe não estava se sentindo meia cansada, mas que não se contenta em sabê-lo: ele se atribuiu a missão de compensar a deficiência da formação escolar brasileira. Ele não sabe que a erudição deve ser usada como um relógio de bolso, que só é sacado quando a gente precisa saber as horas ou quando alguém nos pergunta por elas. Já houve, por exemplo, gente que quis ensinar-me a maneira correta de pronunciar meu sobrenome.

                     Não confunda o sabichão com o professor. No caso deste, queremos que ele nos corrija, e seu conhecimento não é oferecido com a aparência de generosidade daquele que de fato não a possui, mas como serviço prestado mediante pagamento para nos ensinar algo.

                    Mas agora há um terceiro tipo de sabichão, o pior de todos, o mais execrável, o mais nocivo e, pasme, o mais inevitável deles: o corretor ortográfico. Os outros dois podem ser solenemente ignorados (como no caso do sabichão que, segundo Plutarco, tentava ensinar filosofia para Aristóteles e, depois de muito dizer, perguntou: “Estou falando demais na sua cabeça?”, ao que o filósofo respondeu: “Não se preocupe, eu não estava prestando atenção”). Contra o corretor ortográfico, não há nada que se possa fazer. Em primeiro lugar, porque não podemos deixar de usá-lo, já que não queremos que nosso texto seja corrigido por outros sabichões, de pele e osso. Em segundo lugar, porque, ainda que insistamos em grafar uma palavra de um modo, ele também insistirá que aquela grafia está errada (por exemplo, na coluna do dia 28/09, por mais que eu escrevesse café espresso, o corretor insistia em alterar para café expresso). Em terceiro lugar porque, por mais atentos que sejamos ao rever suas sugestões, algo sempre nos escapará (e pérolas, como as seguintes, surgem do nada: um amigo quis postar em um grupo de Whatsapp “Querida Fulana, beijos e abraços!”, e o corretor mudou para “Queria a fulana, beijos e abraços!”. Outro, referindo-se a meu novo livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, escreveu que este era meu “livro mais decente”. Queria dizer recente, espero). É uma batalha inglória, portanto, lutar contra ele. Na maioria das vezes, somos vencidos pelo cansaço, como agora: resta-me apenas utilizar o ccoretor ortográfico do Windows e entregar este texto ao editor.

 

[1] Marcelo Galuppo é doutor em Filosofia do Direito e professor da PUC Minas e da UFMG. Ele é autor, dentre outros, de #Um dia sem reclamar, de 2020, #Um dia sem odiar, de 2024, ambos em coautoria com Davi Lago, e Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, de 2024, todos pela Editora Citadel.

             

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