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Nós somos o que somos ou intérpretes das nossas vidas?

Nós somos o que somos ou intérpretes das nossas vidas?

Na realidade, as telinhas são como o mundo da Alice no País das Maravilhas, onde tudo é colorido, mágico, divertido e cheio de estímulos visuais e sonoros. Algo como uma experiência

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12-10-2024 às 08h:48

Rogério Reis Devisate*

Alguma despersonalização tem ocorrido, enquanto criamos personagens para ocupar as redes sociais. 

A busca por curtidas e mensagens dos milhares de seguidores, ilustres desconhecidos, aliada à necessidade de bem aparecer para eles, estão forjando alter egos, verdadeiramente um tipo de “segundo eu” que seja mais legal, mais qualificado, mais bonito, mais sedutor e mais cativante. 

Esse personagem também ostenta personalidade melhor e mais nobre, que não fica sem viajar ou longe das boas festas e restaurantes sofisticados. Personalidades que não vão ao banheiro, não têm problemas, não se chateiam, não têm horários e compromissos a cumprir, não trabalham e vivem sorrindo. Personagens aparentemente autossuficientes que, no entanto, são a cada passo mais e mais dependentes dos outros.

De algum modo, mesmo os leigos nas ciências da mente e da alma são capazes de notar que há algo de antinatural ocorrendo, talvez com a superlativação desses personagens tão desejáveis e o enterramento da vida real.

Esse mundo virtual não é exatamente novidade, embora atualmente esteja difundido entre tantos e com uma intensidade nunca vista. No passado existiram coisas do tipo, ou alguém acha que poderia obter certidão de nascimento ou de óbito da Marylin Monroe? Ela era um personagem, sendo Norma Jeane Mortenson o seu nome verdadeiro. Pois é... 

Não se pode viver a fantasia sem sobrecarregar o seu eu verdadeiro. Quem assistiu ao Coringa do Batman identifica que a aparência exterior não corresponde às sombras da mente humana, havendo profusão de transtornos e de dissociação de identidade.

Levada a ideia para o cotidiano de tantos, notadamente para os mais jovens e crianças, não fica distante a percepção de que aumentam a ansiedade, a depressão e questões outras, em parte fomentadas por essa dissociação entre realidade e projeção de alter ego, com doses de evidências outras, que os mistérios da mente humana podem projetar e que trazem sofrimento à alma e ao corpo.

Na realidade, as telinhas são como o mundo da Alice no País das Maravilhas, onde tudo é colorido, mágico, divertido e cheio de estímulos visuais e sonoros. Algo como uma experiência psicodélica em caleidoscópio mutante e convidativo. 

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Nas telinhas, não temos pausas para respirar entre uma e outra experiência e ficamos viciados em mais e mais estímulos. O ciclo é de moto-contínuo, num movimento perpétuo e constante, que se auto alimenta e potencializa. A cada novo ciclo, um aumento potencial, aparentemente pequeno, mas inegavelmente relevante para a mente humana. Cada vez se quer mais.

Não somos mais o que éramos e a humanidade não sairá impune desse contexto, pois as telas viraram as janelas do mundo. Cada vez mais as meras imagens na telinha ganham status de uma janela para o mundo.

Quanto bom e suave era se abrir as janelas reais, das casas, sítios e apartamentos, deixando entrar a brisa fresca, a luz do sol, o verde adiante e a vida a nos convidar a vivenciar experiências reais. Ao longo da história e por milhares de anos, saíamos de casa para falar com as pessoas, olhando-as nos olhos, apertar as suas mãos, abraçá-las e conversar sobre o que fosse. Em parte isso está a se perder e muito rapidamente, ao se trocar vivenciar experiências reais por mergulho nas fantasias desse mundo de imagens.

As aparências têm dominado o conteúdo. Ter milhares ou dezenas de milhares de seguidores passou a ser meta de muitos. Os currículos são vencidos nas redes pelas curtidas. No entanto, o fútil faz fama, mas não fixa raízes. Logo dele se enjoa, se dispensa, se troca. Falta-lhe conteúdo. Em tempos de transição, as relações duradouras cedem ao imediatismo e as boas conversas e a prosa leve de repente se tornam diálogos curtos, quase monólogos. 

A confusão entre a pessoa real e o personagem alimenta dissociações não mais apenas em grandes personagens, mas nas pessoas que moram na casa ao lado, que frequentam o mesmo ônibus, a mesma loja, a mesma pizzaria. Para onde se olhar haverá telas. Nos shows e grandes espetáculos a foto ou imagem da telinha, para comprovar que lá se está, ganha em importância sobre o quer acontece no palco. Mais do que vivenciar a experiência, importa as curtidas na postagem feita.

Assim, os cheiros, sabores e sensações outras acabam sendo delegadas a um segundo ou terceiro planos, pois o que importa é a foto e a curtida.

Ainda mais do que isso, parece que nada mais importa para muitos, a não ser o engajamento.

É como se estivesse se aplicando aquela máxima de Maquiavel de que os fins justificam os meios, pois parece que tudo, tudo, apenas é meio de se alcançar a confirmação em forma de curtidas.

Qual o alcance desses elogios, representativos da confirmação da ação que se fez, ao longo do tempo, de modo consolidado e padronizado, na vida das pessoas? Os mais jovens, em formação, não terão abalos nas suas emoções quando, no mundo real, receberem críticas ou não confirmações? As telas geram para os usuários as boas notas nas provas, a fixação no emprego ou a melhoria da condição de vida?

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De algum modo, temos sido conduzidos a uma ruptura com o nosso eu individual, com a nossa essência e verdade. Estamos sendo manobrados a uma existência mais coletivizada, com as nossas opiniões pessoais sendo disfarçadas para que não sejamos “cancelados” em aplicativos. Parece que, mais do que nunca, o medo de não ser aceito e, portanto, da rejeição, padroniza o agir e o não agir de muitas pessoas.

Conscientemente ou não, estamos deixando de ser os indivíduos que acertam e erram nos individuais processos de aprendizado para ser mais um a integrar grupos ou massas de pessoas que têm os mesmos significados. Sem perceber, somos mais conduzidos do que condutores. Somos mais consumidores de padrões de comportamento e de opinião do que construtores do nosso livre pensar.

Somos menos motivados a lutar pela liberdade de agir e de ter livre pensamento, desde que possamos assim fazer dentro de determinado universo que nos tolere e aceite.

Tememos, percebamos, mais as críticas, resistências e responsabilidades. De algum modo, as pessoas têm sido mais parcela da massa e menos os mantenedores da própria individualidade na sociedade. Não se trata de modismos como roupas e outros desejos de consumo. A questão é mais profunda e, ao mesmo tempo, sutil, na medida em que envolve a mente e o comportamento. Parece que as conclusões simplistas de ”sim ou não” e “a favor ou contra” têm mais significado do que o motivo pelo qual se formam tais opiniões.

Quem, de fato, parece se importar com verdades absolutas ou motivos justos e perfeitos quando se pode ter uma foto sorridente, numa selfie que parcialmente oculta a estátua da liberdade, o pão de açúcar ou a Torre Eiffel? Para que se olhar para as imagens dos lugares reais que se visita, quando se consegue curtidas que alimentam a nossa dependência, bastando, para isso, que se poste

foto de imediato, no lugar onde estejamos? Satisfaz-nos mais estar nos lugares para os quais viajamos ou ter curtida a foto desses lugares? Importa os sabores vibrantes dos pratos mais sofisticados, se não pudermos postar uma “fotinha” sequer?

Com o passar dos tempos, talvez “sair” da telinha venha a ser cada vez mais doloroso. Um choque de realidade bastará para voltarmos logo para as telinhas e o seu conforto seletivo.

Desdobrando-se o contexto, somos ou não os melhores intérpretes das nossas vidas em vez de vivê-la com experiências reais, que podem não ser tão boas quanto as fotos habituais, mas são o que a

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*Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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