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Uma gota no oceano da história

Uma gota no oceano da história

Estamos mais tolerantes sobre algumas questões, como as religiosas, mas ainda não deixamos de resistir a qualquer coisa que soe diferente.

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26-08-2024 às 09h:38

Rogério Reis Devisate*

Por mais estranho que possa parecer, os últimos 250 anos não foram os mais insensatos da história humana. Isso, apesar dos estragos, traumas e sangue das duas guerras mundiais, das atrocidades dos atentados terroristas, das dramáticas notícias sobre estupros, chacinas, atentados a tiros em escolas e cataclismas que a muitos vitimaram.

As constituições têm servido de guia garantidor contra abusos frequentes, freando impulsos por vaidade e ódio. É bem verdade que isso não significa pureza de todos os propósitos políticos, mas é um norte mais seguro do que o nada constitucional que antes reinava, junto com reis e déspotas que impunham a força pelo poder dos seus exércitos que impunham a guerra total e a escravização dos povos dominados, com estupros e saques não apenas tolerados, mas vistos como consequência natural.

Além disso, a Declaração dos Direitos Humanos nem fez 100 anos, tendo nascido na ONU, em 1948, enquanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é de 1789, surgida no contexto da Revolução Francesa. Portanto, ambas são construções recentes e sem paralelo na história da humanidade, assim como a Democracia moderna e os governos republicanos, a imprensa e as várias formas de valorização da liberdade.

É também verdade que a medicina e a alimentação humana alcançaram padrões muito superiores aos do passado. A invenção da anestesia, dos antibióticos e de exames laboratoriais propiciaram um universo de diagnósticos e tratamentos antes inimagináveis, nos levando ao nível de hoje, que é incomparável ao que antes existia, incluindo-se, aí, naturalmente, as cirurgias mais complexas, que são muito distintas da mera amputação de membros e o emprego de chás ou sanguessugas para a convalescença.

As residências comuns, como as que conhecemos, são infinitamente mais higiênicas, maiores e ventiladas do que outrora.

O turismo surgiu como algo moderno, ao alcance de muitos e fruto dos tecnológicos meios de transporte disponíveis.

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A energia elétrica também é obra recente e nos permitiu dar saltos imensos na qualidade de vida, com lâmpadas, micro-ondas, ar condicionado, computadores, aviões, etc. Antes, as ruas eram escuras e apenas alguns lugares contavam com luz vinda dos lampiões.

Mas, apesar de tudo e de tanto que se possa detalhar, a humanidade ainda padece dos mesmos males, pois nada do que falamos fez as pessoas vencerem a inveja, a ganância, a vaidade e a ignorância.

Estamos mais tolerantes sobre algumas questões, como as religiosas, mas ainda não deixamos de resistir a qualquer coisa que soe diferente. É bom registrar que o ato de tolerar apenas significa suportar e não conviver com naturalidade, tendo os demais como iguais ou irmãos. Ademais, isso não afasta a discriminação disfarçada.

Os 7 pecados capitais estão tão presentes quanto antes, tanto nas capitais (me perdoem pelo trocadilho) quanto no interior mais remoto, de todas as nações.

Sociopatas não são invenção moderna. Apenas não se falava em relacionamentos tóxicos, no passado, mas estes sempre existiram. São da modernidade apenas os nomes que se dá a certos fenômenos, o conhecimento da psicologia e da psiquiatria e a categorização de comportamentos humanos.

Tanto é assim que, sobre os desvios de personalidade, as falhas de caráter e os abusos autoritaristas, há obras clássicas, que rasgaram o tempo em que foram escritas e nos chegam, hoje, ainda, plenamente atuais nas suas abordagens. Dentre tantas, falamos das obras de Homero, Cícero, Ovídio, Platão, Aristóteles e Shakespeare.

A força dos clássicos está na sua capacidade de se manter atuais porque o que contém se identifica com a atualidade das ações humanas. Supor que estariam ultrapassados não corresponde à verdade e exigiria que se demonstrasse “quem ou o que” os ultrapassou. Não são os clássicos que se identificam com pessoas de hoje; são as pessoas de hoje que ainda não superaram atitudes já registradas por essa literatura. O tempo passa e a tecnologia prospera, mas os caprichos da humanidade são os mesmos, apenas se perpetuando, e, até se aprimorando, com requintes de modernidade.

A inteligência artificial nos chega como o ápice contemporâneo do desenvolvimento tecnológico. Só se fala nisso e na sua aplicação aqui, ali e acolá. Salvar-nos-á de nós mesmos? Do jeito que a coisa segue, a inteligência artificial e o desenvolvimento de máquinas específicas tendem a permitir que não mais as mãos humanas realizem muitas atividades, como as obturações nos dentes,

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pequenas cirurgias, construção e testes de equipamentos e produtos fabris, controle de máquinas e de qualidade dos produtos, modificação dos paradigmas nos processos judiciais comuns e substituição da imensa quantidade de pessoas envolvidas nessas operações, nos cartórios, peticionamentos e

julgamentos, além de atividades para as quais ainda nem podemos imaginar o seu uso e emprego.

Esse “andar civilizatório” parece destinado ao contínuo aprimoramento.

Contudo, a história é feita de ciclos e como a roda gira, quem garante que não tenhamos, doravante, fortes períodos com carência de água potável e comida disponível, levando-nos a novas horrendas guerras pelo mais básico para a nossa sobrevivência, nos forçando a agir com os mais primitivos instintos e a matar para não morrer, sem dó, sem perdão, sem piedade? É só olhar em volta, ler as notícias e perceber coisas e realidades duras, em vários locais, nas quais não focamos, envolvidos em nossas atividades e distrações cotidianas.

Temos privilegiado os mais nobres comportamentos e condenado práticas que consideramos próprias dos “menos evoluídos”. Contudo, na era dos extremos, afloram com naturalidade os instintos mais elementares, para os quais fechamos os olhos, simplesmente como se esses tivessem ficado no passado e como se a humanidade fosse o que vemos nos shoppings centers.

Será que a guilhotina foi, mesmo, condenada ao passado? Será que os pelotões de fuzilamento, o esquartejamento – como o sofrido por Tiradentes – e o arrastar dos corpos pelo chão, puxados por cavalos, ficaram na noite passada da humanidade? Deixamos no tempo remoto as torturas da Inquisição, as guerras religiosas como As Cruzadas, o tratamento dispensado aos nativos por Pizarro e as práticas de Vlad, o empalador?

A cada ano renovam-se as carnificinas, com guerras surgindo e outras se perpetuando e, em todas, a terra absorvendo o sangue quente dos guerreiros e demais inocentes, enquanto os donos do poder, sentados em confortáveis poltronas, decidem os seus jogos.

Não é difícil que o manso ronronar de alguns líderes seja substituído pelo rosnar feroz e que a este siga o zumbido das balas e o estrondo dos canhões.

Que o nosso presente, essa gota no oceano da história, possa não terminar com o romper desse ciclo de Estados e Nações, convenientes invenções modernas, para substituir a reinos e reis. Muitos já criticam esses modelos atuais, vendo-os, inclusive, como causas de guerras, esquecendo-se de que essas sempre moeram os corpos dos moços, empunhando as armas disponíveis e produzindo os seus mortos, feridos, viúvas e órfãos. Contudo, a Democracia moderna vem erodindo em alguns dos seus antes mais sólidos pilares, as pessoas estão céticas quanto a processos eleitorais, atuações judiciais,

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sofrendo com corrupção, abusos aqui ou acolá e com medo do que estamos nos tornando, como lobos de nós mesmos e com a volta de algo mais próximo ao Antigo Regime e das ações absolutistas e arbitrárias em torno de governos onde a vontade de um ou alguns corresponda à subjugação de muitos; onde a liberdade seja negada às massas; onde os trabalhos sem salário sejam a tônica, até pelo aumento da oferta de mão-de-obra em razão do crescimento populacional e do exponencial emprego da inteligência artificial e de máquinas que substituem, mesmo e mais, as pessoas de carne e osso, nos levando a viver em época na qual tenhamos saudades melancólicas dos tempos de hoje.

Toda atenção é pouca, toda atenção é pouca, toda atenção é... pouca

Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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