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Um novo paradigma para a responsabilidade civil?

Um novo paradigma para a responsabilidade civil?

Breves apontamentos sobre a aplicação do princípio da socialização do risco, a caminho da superação do dogma da causalidade

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11-08-2024 às 11h:11

Braga da Rocha*

A evolução teórica do marco da culpa para o paradigma do risco – operada a partir de fins do século XIX, de modo a ensejar a chamada teoria da responsabilidade objetiva – representou talvez o mais notável progresso no pensamento jurídico sobre a responsabilidade civil, marcando o abandono do elemento subjetivo como nota essencial a sua caracterização.

Manteve-se, entrementes, a ideia de imposição do dever de indenizar fundada em um elemento dogmático de natureza objetiva e, por suposta decorrência lógica, aparentemente inflexível, a que se costuma chamar de nexo causal ou relação de causalidade.

Com efeito, à primeira vista, parece revestir-se de caráter absolutamente necessário o estabelecimento de alguma relação, ainda que ausente o dolo ou a culpa, entre uma ação ou omissão imputável a determinado sujeito de direito e a ocorrência de certo evento danoso.

Todavia, as construções teóricas de que se extrai o princípio da socialização do risco, estabelecido na doutrina já em meados do século XX, podem conduzir, nos tempos que correm, a uma novel revisão estrutural do tradicional conceito de responsabilidade civil, permitindo a configuração de formas de responsabilidade que, a pouco e pouco, abandonam ou relativizam a compreensão da relação de causalidade entre comportamento e resultado.

Tem-se aplicado a ideia de socialização do risco, de ordinário, à chamada responsabilidade civil coletiva, ou de grupos, na esfera privada. Desse modo, diante da impossibilidade, no seio de um grupo qualquer de pessoas, de se determinar individualmente o responsável pela prática de ato danoso, admite-se atribuir responsabilidade comum à generalidade de seus membros, haja vista uma relação causal indireta ou mediata subjacente, senão meramente presumida ou mesmo ficta.

Idêntico princípio bem se poderia aplicar — segundo a ideia expressa no célebre aforismo ubi ratio, ibi ius — a uma das formas mais amplas e preeminentes de responsabilidade coletiva, que é, em última análise, a responsabilidade civil do Estado.

Assim, quando uma atividade ou situação objetiva que aproveita fundamentalmente à coletividade importar dano a um indivíduo, ou grupo de indivíduos, pode-se razoavelmente impor ao Estado o dever de indenizar, dispensada a verificação de qualquer nexo de causalidade entre qualquer ato ou omissão do ente público, ou um comportamento comissivo ou omissivo de seus agentes, e a produção do dano.

Atende-se, com isso, ao imperativo de distribuir de forma equitativa, pelos membros do corpo social, os ônus decorrentes de tal atividade ou estado de coisas concreto, estabelecidos em proveito da própria coletividade.

O princípio da socialização do risco pode vir a demarcar, desta forma, um novo paradigma para a responsabilidade civil, em corolário da radical afirmação do dever geral de solidariedade entre os membros do corpo social, universo de que o Estado constitui, afinal, a mais acabada personificação.

Nota: As reflexões contidas nestes brevíssimos apontamentos sobre uma fronteira teórica do tema da responsabilidade civil –  ensaiados em comunicação apresentada à 49ª. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, que teve lugar em Belo Horizonte no ano de 1997 – fazem-se em boa hora propícias a se lançar novamente ao debate público, à vista do discutível, açodado e assistemático processo de revisão do Código Civil brasileiro, de 2002, ora em curso no Congresso Nacional.

*Braga da Rocha é professor universitário, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, e membro da carreira de Estado de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do Poder Executivo Federal

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