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Robinson Cavalcanti, o evangelicalismo para além do gueto

Robinson Cavalcanti, o evangelicalismo para além do gueto

Para Dom Robinson, algumas das ascendentes expressões contemporâneas do evangelicalismo adotavam práticas de tal forma entranhas ao espírito da Reforma Protestante

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25-06-2024 às 09h:31

Pedro Barreto*

Ainda em tempo de celebrar a vida de Dom Robinson Cavalcanti (1944-2012), que completaria 80 anos na última sexta-feira (21.06), a coluna procura aqui prestar uma singela homenagem ao inspirador legado de uma das figuras mais interessantes do evangelicalismo brasileiro. Bispo da Igreja Anglicana (Diocese Recife) e professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Robinson Cavalcanti era homem que conjugava espiritualidade, reflexão e combatividade social. De forma especial, gostaríamos de resgatar alguns de seus argutos apontamentos sobre o universo evangélico no Brasil. 

Ainda no começo dos anos 2000, Cavalcanti constatava a tendência do evangelicalismo brasileiro a se descaracterizar enquanto movimento portador de uma leitura e de um discurso da fé cristã para se definir como um grupo de subcultura, uma espécie de tribo sociológica no amorfo mosaico multicultural da sociedade pós-moderna. Para ele, as comunidades evangélicas do país padeciam, em sua maioria, de uma estranha mentalidade de gueto. Nesse enquadramento, elas seriam influenciadas por esquemas mentais de tal modo autocentrados — com seus ícones, linguajares e até um emergente estilo musical próprios — que as levavam a adotar uma disposição de indiferença, quando não de suspeita, em relação ao que viria de seu mundo exterior.   

O cultivo dessa espiritualidade culturalmente insulada se dava em paralelo com a próprio desenraizamento de sua tradição histórica.  Para Dom Robinson, algumas das ascendentes expressões contemporâneas do evangelicalismo adotavam práticas de tal forma entranhas ao espírito da Reforma Protestante que, dizia ele, a fidelidade aos preceitos pregados por Martinho Lutero, João Calvino e outros reformadores implicava uma aberta infidelidade a esses grupos.  Nesse sentido, é digno de nota que o líder religioso designava a Igreja Universal do Reino de Deus e suas congêneres propagadoras da Teologia da Prosperidade por seitas “pseudo-pentecostais” e “paraprotestantes”, dada a gritante ausência de quaisquer pontos de contato entre tais entidades e os ramos do protestantismo.   

Além disso, ele via prevalecer, bem ao estilo de nosso contexto brasileiro, uma espécie evangelicalismo “Contra-reformado”, marcado por dogmatismo, lideranças autoritárias, anti-intelectualismo, bem como pela sacralização de intuições e costumes. Impossível não reconhecer os ecos dessa disposição, digamos, tridentina na maneira como segmentos expressivos do mundo evangélico tem realizado seu ingresso na vida política. Em vez de denunciar as estruturas iníquas de poder que imperam na coletividade brasileira, o evangelicalismo de gueto produziu sua ascensão acomodando-se docilmente a elas, na esteira de uma busca sistemática de favores junto aos governantes, e em detrimento de um radical compromisso com a bem comum. Com efeito, as bancadas evangélicas no Parlamento brasileiro, infladas por uma estéril retórica moralista, operam em termos essencialmente fisiológicos, como um verdadeiro “Centrão de Jesus” voltado aos guetos evangélicos 

Essa perda de consciência histórica do evangelicalismo significava, entre outras coisas, uma inibição a um engajamento público construtivo. Massificado e enclausurado nos muros mentais que ergueu em torno de si mesmo, esse movimento evangélico raramente ofereceu estímulo institucional para que seus fiéis se envolvessem em atividades científicas ou na produção artística fora do contexto eclesiástico.  Enquanto os reformadores ostentavam títulos de doutor e fundavam universidade — a atual Universidade de Genebra, na Suíça, por exemplo, fora fundada no século XVI pelo próprio João Calvino — Cavalcanti via com preocupação (professor universitário que era) prevalecer em muitas dessas comunidades religiosas um preconceito contra a ciência, sobretudo contra os saberes do campo de Humanidades. Cavalcanti não deixava de expressar certa consternação diante da ausência de uma contribuição consistente do protestantismo à intelectualidade nacional, razão pela qual ele viria advogar a formação de um segmento pensante do meio evangélico — “uma elite intelectual’, como ele reivindicava — que, sem cair em um academicismo estéril, deveria dispor de disciplina e compromisso  intelectuais suficientes para construir abordagens teológicas e pautas para suas comunidades contextualizadas com realidade brasileira. 

Contra o evangelicalismo de gueto, a figura de Cavalcanti exalava uma espiritualidade integral, que conjugava adoração e contemplação, reflexão e estudo, com engajamento e ação social. 

Para ele, muito embora a mensagem cristã consistisse centralmente na salvação do homem — isto é, na reconstituição, mediante a fé, de seu vínculo com Deus, o qual fora rompido pelo pecado — as implicações para a cultura de seus conteúdos éticos eram tão inefastáveis que ela necessariamente agia como fermentadora da libertação de indivíduos e de comunidades. Aqui, o leitor que não se engane. Cavalcanti não era um adepto da Teologia da Libertação ou de correntes similares, tão poucos me pareceria disposto a flertar com certos modismos teológicos identitários mais contemporâneos. Não obstante, ele também reconhecia o cristianismo como um mensageiro de libertação do humano em sua integralidade.  

Mesmo diagnosticando um quadro preocupante, Cavalcanti acreditava na vocação das igrejas cristãs em atuar como agentes de transformação histórica. A Igreja Reformada, em particular, deveria estar comprometida com a promoção de reformas em seu contexto exterior tanto quanto com sua reforma interior. Nesse sentido, Dom Robinson postulava que o universo evangélico construísse uma proposta social abrangente para a coletividade brasileira, que assumisse as dimensões macro do apelo solidário e comunitário da mensagem cristã e que, renovando a tradição modernizante do protestantismo, desse conta de oferecer alguma alternativa estrutural às mazelas brasileiras aprofundadas pelo neoliberalismo. Por isso mesmo, ele defendia um modelo de evangelicalismo que abraçasse verdadeiramente a brasilidade; um evangelicalismo que também fosse uma presença iluminadora e aperfeiçoadora das próprias identidades nacional e regionais do país — sempre ameaçadas pelos ditames da globalização. “Salvação nas culturas, das culturas e para as culturas”, como ele reivindicava

A opção do evangelicalismo de gueto, por óbvio, é muito alheio a tudo isso. A julgar pelas recentes declarações de um famoso pastor (que é também um exitoso CEO da indústria gospel) recomendando que jovens evangélicos não fossem à Universidade, tal opção ainda ressoa nas vozes de ícones influente do mundo evangélico. Não deixo de constatar que a atuação da figura em questão remeteu-me a um certeiro diagnóstico que certa feita o próprio Robinson Cavalcanti fizera sobre o estado das poderosas lideranças do evangelicalismo brasileiro — a de que pareciam uma estranha mistura de caudilhos latino-americanos com pop-stars estadunidenses... 

Voltando ao episódio. Ele sinaliza para uma aposta no reforço da lógica tribal, de isolamento cultural, que Cavalcanti tentou combater.  O evangelicalismo de gueto não propicia a constituição de cultura que salgue ou ilumine o mundo, ela não estimula as comunidades evangélicas a atuarem de modo sistemático para regenerar as chagas sociais da dura realidade nacional a partir da mensagem cristã. Antes, ele opta por reforçar um histérico paradigma de guerra cultural que chega ao absurdo de identificar a piedade com a ignorância. Não bastasse seu paupérrimo repertório espiritual, ou mesmo sua indisposição, para lidar com a complexidade de contexto marcado pela interação entre diferentes visões de mundo — como é próprio do ambiente universitário — a mentalidade de gueto também se revela ela mesma empobrecedora e infantilizada. Ela insinua haver sensatez em obstaculizar o caminho ao ensino superior de milhões de jovens protestantes (muitos dos quais integrantes das classes mais baixas do nosso país).   

É em face desse contexto que a memória de Robinson Cavalcanti deve ser resgatada e festejada. Ele, que nunca fugiu da universidade, mas nela buscou se inserir vividamente, quer como integrante de movimento estudantil  — ainda na graduação, Dom Robinson participara do Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, da Faculdade de Direito da UFPE — , quer como obreiro das Aliança Bíblica Universitário (ABU) e Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), quer como docente, membro dos sindicato de professores de ensino superior (Andes), ou mesmo Diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Nesse sentido, Dom Robinson deixa um importante e inspirador legado para os inúmeros jovens evangélicos que todos os anos adentram as intuições universitárias de nosso país. Sua trajetória serve também de lembrete não só da possibilidade de construir pontes entre a espiritualidade cristã evangélica e a cultura. Afinal, como ele mesmo dizia:

"Continuo crendo no evangelho e na necessidade do novo nascimento, no valor da conversão, sem sombra de dúvidas. Mas, o que fazer com os convertidos? E o que os convertidos têm feito? Se algo não for feito com os que deveriam fazer, esses nada farão. Precisamos converter os convertidos ao país, à cultura, ao povo, à justiça, à história e à vida."  (Robinson Cavalcanti, A igreja, o país e o mundo, p.60)

*Pedro Barreto é pesquisador em estudos estratégico; Mestre em Direito e Bacharel em Ciências do Estado, ambos pela UFMG; e um protestante terrivelmente brasileiro.

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