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Razão e eleição no Brasil

Razão e eleição no Brasil

O modelo distrital, por sua vez, busca fortalecer o vínculo imediato entre eleitor e candidato, e apesar de enfraquecer o debate ideológico mais amplo, prima pelo controle mais direto do representante pelo grupo populacional que o elege

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16-07-2024 às 08h:50

Hugo Rezende Henriques*

O tema dos sistemas de governo é um tema de constante e caloroso debate na agenda política brasileira, centrado no instigante embate entre Parlamentarismo e Presidencialismo. E, apesar da radical (e talvez inexplicável) mudança dos progressismos brasileiros rumo ao Presidencialismo, segue vivo nos corações e mentes mais comprometidos com o Estado brasileiro o sonho parlamentarista. Assim o demonstra o recente texto publicado por este Diário de Minas aos 05 de julho de 2024, intitulado “Amigos petistas: ao parlamentarismo!”. Meu pendor pessoal ao Parlamentarismo, por razões democráticas variadas, me enche de ímpeto para adentrar nesse instigante debate, do qual só com muita disciplina me esquivo nesse momento.

Não o faço, entretanto, para me eximir do rico debate sobre a organização política brasileira, mas, ao contrário, para chamar atenção do leitor acerca de um tema conexo, mas bastante mais urgente no caso brasileiro, o sistema eleitoral. Tradicionalmente, na imensa maioria dos estados que nutrem apreço pela democracia parlamentar, isto é, pela compreensão de que o Parlamento é a sede da soberania popular e expressão do seu exercício, a escolha dos representantes (os deputados) se dá a partir de dois modelos básicos: proporcional e distrital. Perdoem o vício de professor, prometo ser breve.

O modelo proporcional busca fortalecer os partidos políticos e reduzir os efeitos mais ultrajantes do personalismo político. Os partidos obtêm assentos no Parlamento segundo a proporção de votos confiados pelos eleitores à sua legenda ou à sua coligação, quando for o caso. A racionalidade política do sistema proporcional é a vinculação entre voto e a ideologia política que certo grupamento político representa. A racionalidade econômica se dá na simplificação das campanhas eleitorais, centradas em fazer conhecer o partido e suas ideias, eventualmente suas principais lideranças.

O modelo distrital, por sua vez, busca fortalecer o vínculo imediato entre eleitor e candidato, e apesar de enfraquecer o debate ideológico mais amplo, prima pelo controle mais direto do representante pelo grupo populacional que o elege. O sistema de eleição é simplificado, pois usualmente majoritário, isto é, o candidato mais votado em um distrito será o deputado daquela região. A racionalidade política do sistema distrital é o vínculo quase pessoal entre o eleito e a maioria dos eleitores, que poderão cobrá-lo diretamente por suas posições. A racionalidade econômica se dá na simplificação das campanhas eleitorais, centradas em distritos territorialmente pequenos e candidatos pessoalmente engajados em se apresentar ao conjunto de eleitores. Em casos extremos, dada a personalidade do modelo, pretere-se mesmo da partidarização dos candidatos, permitindo-se as chamadas candidaturas “avulsas”, de candidatos sem partido.

Variações ou intersecções entre os dois modelos prototípicos são comuns e estão presentes em quase todos os sistemas eleitorais democráticos, adequando-os às realidades locais ou aos objetivos políticos que se almeja verem alcançados.

O sistema eleitoral brasileiro atual é curioso. Formalmente proporcional, a adoção de listas abertas de candidatos confere a ele particularidades um tanto surrealistas. No modelo tradicional, cada partido apresenta ao pleito uma lista fixa de candidatos, e a depender do número de cadeiras alcançadas, os primeiros nomes da lista irão ocupá-las (ao menos enquanto permanecerem no partido). Também estão definidos os suplentes, pois em caso de vacância ou abandono por qualquer razão e a qualquer tempo durante o mandato, o próximo nome da lista original assume. A lista aberta brasileira torna o processo imprevisível ao eleitor, pois seu voto em determinado partido elegerá um candidato que não é possível a ele determinar, já que só após o fim das eleições teremos a lista final de cada partido (organizada em ordem do número de votos pessoais de cada candidato).

Assim, nosso sistema eleitoral é capaz de desfigurar toda a racionalidade do sistema proporcional, enfraquecendo partidos – vez que os eleitores são instados a confiarem seus votos a candidaturas supostamente pessoais – e tornando o modelo personalista, mas sem a proximidade entre eleitores e eleitos que o voto distrital busca garantir a partir da definição de distritos espacialmente reduzidos. O personalismo esvazia o já exíguo debate ideológico pátrio, pois as campanhas, pessoais, tendem a se centrar em realizações ou promessas práticas e imediatas que fortalecem a figura e o nome do candidato perante os eleitores. Em outra frente, a racionalidade econômica se esvai por completo, uma vez que cada candidato (ou ao menos cada candidato verdadeiro, coisas do Brasil) deverá realizar uma campanha pessoal ampla (a nível estadual), e não raro predatória contra seus próprios correligionários, uma vez que não basta garantir um certo número de votos ao partido, mas é preciso também vencer a batalha eleitoral intrapartidária para figurar entre os primeiros nomes na lista partidária.

As questões eleitorais não fogem ao conhecimento das instituições pátrias, ou dos próprios políticos, que desde a promulgação da Constituição de 1988 se esforçam para modificar (com resultados variados) o sistema. Tratam do tema uma pequena, mas significativa parcela da barafunda de Emendas Constitucionais que desde então vêm se atropelando no cenário institucional brasileiro (segundo o site do Planalto, são hoje 132, além das 06 revisionais). As alterações mais recentes, visando reduzir a ultra fragmentada composição parlamentar, estabeleceram cláusulas de barreira, proibiram coligações partidárias, e criaram as “federações partidárias” que seguem em experiência na atual legislatura. De consequências imensas e ainda pouco debatidas, também regulamentaram o acesso ao “Fundo Especial de Financiamento de Campanha”, criado na esteira de uma republicana decisão do STF que proibiu o financiamento empresarial de campanhas.

Podemos então finalmente pintar o cenário político-eleitoral brasileiro atual: um sistema eleitoral proporcional, mas com lista aberta, exigindo campanhas dispendiosas e personalistas, atrelado a um financiamento público limitado e um financiamento pessoal exíguo (a cultura eleitoral brasileira nunca indicou tradições de financiamento civil e pessoal de campanhas, exceções à parte). Assim, porquanto o sistema eleitoral pátrio siga exigindo dos candidatos que estes trabalhem seus nomes incansavelmente (e não nos iludamos, não se faz campanha apenas no período eleitoral), o financiamento propriamente eleitoral é insuficiente para os crescentes valores de campanhas cada vez mais dispendiosas. Uma complexa conta política, diante de uma imensa conta eleitoral.

A resposta dos parlamentares brasileiros ainda se faz sentir, pouco debatida. Trata-se do “aggiornamento” de uma tradição brasileira sobrevivente do período de ditadura civil-militar de 1964-1985, período no qual, impossibilitados de fazer política propriamente dita, os parlamentares foram transformados em pedintes do Executivo, cuja função precípua era conseguir verbas setoriais para suas bases eleitorais. Realizada a transição ao governo civil e democrático, a tradição seguiu firme e se aprimorou, nas “emendas parlamentares”, somando à grande política essa pequena política comezinha. Antes das mudanças do sistema eleitoral, não era raro se encontrar cartazes explicitando o parlamentar responsável pela conquista de determinada verba, para certa obra pública. Desde então, esta vem se tornando uma ferramenta de campanha fundamental para se “trabalhar” o nome (ou sobrenome, coisas de família) do político fora do período eleitoral. Mostrar quem faz, provar que é eficaz para a região, na expectativa de um retorno eleitoral vindouro, mesmo com uma campanha de financiamento menor.

As consequências destas alterações se fazem sentir na prática política nacional. A disputa entre Parlamento e Governo, que o então candidato FHC denunciava no programa “Roda Viva”, em 1994, se amplia e atinge todos os níveis do orçamento da União. Todos querem carimbar seu nome no orçamento, possibilitando um “outdoor” a mais na avenida, um programa na rádio local para evidenciar o feito, uma matéria de algumas dezenas de segundos ou linhas no jornal da região. Para além de todas as consequências éticas, a solução é absolutamente conservadora, privilegiando os atuais ocupantes de assentos legislativos e criando uma competição eleitoral ainda mais iníqua entre candidatos previamente eleitos e novos candidatos. Ademais, avulta o descasamento entre Parlamento e Governo que o sistema político proporciona, criando uma infinidade de micro interesses a disputar espaço no cenário nacional, tornando a efetivação de políticas de governo e de Estado que fossem lógicas e funcionais praticamente impossível.

Busquei-me ater às consequências de reformas que considero virtuosas, para mostrar os efeitos que mesmo elas têm em um sistema eleitoral em si mesmo inexplicável. Para fins práticos, a adoção de listas fechadas por si só resolveria uma infinidade de pequenos desajustes (e resolveria com absoluta facilidade a questão das chamadas “cotas” eleitorais para mulheres, negros, e quaisquer outras que se queira eventualmente pensar – muito embora eu creia que no modelo de lista fechada as questões ditas “identitárias” seriam equacionadas dentro do próprio jogo partidário). Isso para não mencionar outras possibilidades de intersecção potencialmente positiva com modelos distritais, mas isso já é um outro assunto.

Em tempo, todo meu esforço de elidir-me do debate sobre sistemas de governo até aqui não me perdoaria se não lembrasse ao cuidadoso leitor que o insuspeito marido da jornalista Miriam Leitão, o professor Sérgio Abranches, em seu inescapável artigo “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”, publicado em 1988 (!) já nos ensinou que o modelo para um Presidencialismo que se queira democrático inclui, ao menos, o instituto do “voto de desconfiança” (a possibilidade do Parlamento demitir o gabinete). Do contrário, o presidencialismo não pode ser democrático – segundo Abranches. Textos essenciais envelhecem bem.

*Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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