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Quem é o povo?

Povo com o discurso e o impacto da palavra do governante na cabeça e no coração de cada um. O coletivo age e reage conforme os estímulos.

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08-08-2024 às 09h:46

Rogério Reis Devisate*

Quando um governante fala “povo”, se dirige a quem? Fala com quem votou nele, com os contribuintes, eleitores, desempregados, empregadores, estudantes, trabalhadores? Quem é o povo?

É o povo que estará sob ameaça quando um país declara guerra e invade outro. Sem necessidade de rigor conceitual e longa análise, esse exemplo prático satisfaz a percepção de que o povo é o coletivo homogêneo identificado por uma característica comum.

O jurista e filósofo francês Bertrand de Jouvenel diz que o povo é o “grupo de pessoas, estreitamente unidas por laços de afinidade, a tal ponto, que cada membro do grupo se sente profundamente inclinado a acompanhar os demais”. A simplicidade dessa exposição a faz ser altamente satisfatória.

Poderíamos parafrasear o Bhagavad Gita para dizer que o povo é a origem de tudo e o meio e o fim. O povo é a vida política e social, é o elemento subjetivo, as gentes, as pessoas. Quando um governante fala ao povo, o faz em relação a todos. Isso não significa que todas as mensagens sejam absorvidas de modo igual por toda a população, o que não está apenas diretamente vinculado a partidários e não partidários dos governantes, bem como eleitores seus e opositores, pois há a interação de muitas nuances. Assim, podemos distinguir povo de partidários e é deveras inadequado se falar em povo quando alguém fala algo que não seja comum ao interesse de todos, notadamente quando houver algum tipo de racha no seio social, com ânimos exaltados em grupos ou segmentos. Povo e partidários, portanto, não são a mesma coisa.

Por outro lado, o povo tem esse corpo identificado e possui o que se poderia identificar como a sua alma. Não seria equivocado identificar que essa forma uma força distinta da mera soma dos indivíduos.

Distinção significativa deve perpassar pela cabeça das pessoas. É diferente quando o governante fala em nome do povo e quando se dirige ao povo. Se dirigir ao povo é sempre natural, mas o mesmo não se pode dizer de falar em nome do povo. Isso tem particular relevância em casos extremos, como os que, de tempos em tempos, vemos aqui ou acolá. Envolve legitimidade, reconhecimento do

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Povo com o discurso e o impacto da palavra do governante na cabeça e no coração de cada um. O coletivo age e reage conforme os estímulos.

Imaginemos o que ocorre agora na cabeça do povo venezuelano, diante de dois candidatos que se autodeclarem vencedores, da ausência da aferição e apresentação das atas e de isento arbitramento sobre o contexto. Importantes países, europeus e americanos, já se pronunciaram contra o processo eleitoral e a anunciada reeleição. Parte do povo foi para as ruas protestar – algo não muito comum naquele país, onde consta que a liberdade de manifestações e opiniões não são tão livres, circunstância própria dos regimes centralizadores. As forças militares locais pronunciam-se em apoio ao atual presidente e a geopolítica está agitada, já que o país, forte produtor de petróleo e gás, manifestou interesse na incorporação da rica região de Essequibo, pertencente à país vizinho. O exemplo não é único, mas é atual.

Saindo do exemplo citado e com abordagem mais abrangente, é crível que o povo pode aplaudir e admirar a vitoriosa atitude do gestor político, mas não o fará eternamente. E mais, tenderá a cobrar futuros resultados positivos, já que, se um foi alcançado, outros também poderiam ser. O vitorioso tenderá, também, a fazer o seu sucessor, normalmente, na história, um filho ou alguém muito próximo à família e, no quadro eleitoral moderno, com a indicação de alguém que possa comandar, influenciar ou manter sob as suas asas. Não raro o líder de vitoriosa gestão indicará alguém que possa lhe suceder e assumir o comando das ações e fazer melhor e, assim, lhe fazer sombra. A vaidade cobra, assim, sempre e sempre, o seu preço.

Aliás, as pessoas do povo podem entender dos custos e do aumento dos preços do pão e dos alimentos, do aluguel e da passagem de ônibus, trem ou metrô, mas nem sempre consideram valores fora do seu cotidiano, como as quantias que envolvem bilhões ou trilhões - comuns nos gastos públicos e nos escândalos de corrupção – e, por isso mesmo, não lhes dá tanta importância, por não ser perfeitamente compreendida a grandeza do que se fala e do quanto isso lhes atinge. Assim, certos conceitos e temas fogem ao seu cotidiano, embora o seu saber natural seja maior e esteja além ao universo desses temas estanques.

Shakespeare, do alto da sua sensibilidade e talento, não deixou de fora a relevância da força e sabedoria do povo, quando, em Ricardo III, escreveu: “No prato em que se encontra vosso esposo nada mais há, senão poucas vaidades e nenhum peso, que mais leve o deixam; mas no lado do grande Bolingbroke se acham todos os pares da Inglaterra, sem contarmos com ele. Essa vantagem vai decidir a

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Seu favor a sorte. Se a Londres fordes, sabereis de tudo quanto fala entre “nós o povo miúdo”.

 O povo é o sábio e dono do poder e se volta contra quem lhe guia mal, ora elegendo outra corrente ideológica, ora fazendo revoluções. A história está cheia de exemplos, por todo o mundo. Entretanto, não há rodízio de pessoas ou grupos ou de propósitos ideológicos ou ideais que modifique o significado da palavra povo. O conjunto está além de qualquer oscilação interna. Pode mudar de forma ou abordagem, mas terá sempre a mesma coletiva consistência política e social.

Por outro lado, o povo é manipulável em certos tempos, agindo inocentemente, alheio a tudo, envolvido apenas no que os seus olhos lhe apresentam. Age crédulo, a confiar que tudo se deu às claras, em prol dos mais elevados valores e propósitos. Tolo, não percebe como o jogo corre, como é usado, como é valorizado e abandonado ao próprio destino. O jogo corre e as regras surgem conforme os momentos, aliás, regras, que são estruturadas para manter em equilíbrio de ocasião todo o contexto, que são rasgadas e desprezadas conforme a conveniência de momento, por caprichos ou valores menores do que os desejáveis. Aliás, no passado foi dito que os cidadãos não gostariam de saber como são feitas as salsichas e as leis. Nem todos os arranjos são nobres, porque nem sempre os homens são nobres. Por vezes se arruma isso ou aquilo, para disfarçar. Noutras ocasiões, um terceiro elemento é introduzido para dar ares de dignidade a algo indigno, colocar um sofá na sala para desfocar o problema, premiar a alguém para atraí-lo pela vaidade ou se fazer algo com aparência altaneira enquanto, nos submundos, as coisas pútridas continuam a ser feitas.

Com a maestria que lhe era peculiar, Machado de Assis, em Quincas Borba, descreve o contexto dos que prosperam às sombras do Poder e que não se exibem aos holofotes mas que, de algum modo, detém o poder de influenciar o Poder: “— Eu diria ao imperador: "Senhor, Vossa Majestade não sabe o que é essa política de corredores, esses arranjos de camarilha. Vossa Majestade quer que os melhores trabalhem nos seus conselhos, mas os medíocres é que se arranjam... O merecimento fica para o lado." É o que lhe hei de dizer um dia; pode ser até que amanhã...”

Em certa medida, mundo afora, pouco ou nada mudou. Noutros momentos, os discursos são duros contra certas situações, até que se mude tudo para que outros assumam a mesma cadeira e façam mais ou menos o que se criticava. Em certa medida, as críticas que se fazia ao Império Russo do tempo dos Romanov sequer se podia fazer aos que assumiram o Poder após a Revolução.

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O povo deveria ser escrito com letra maiúscula (“o Povo”) dado o seu fundamental significado para a ordem social e política, já que dele emana todo o poder – que em seu nome deve ser exercido. Isso não deveria singelamente significar escolha de representantes para agir por si, mas gestões absolutamente conforme os seus objetivos, necessidades e propósitos

*Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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