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Passado, presente e o porvir da guerra: para onde Marte e Minerva caminham?

Passado, presente e o porvir da guerra: para onde Marte e Minerva caminham?

O desenvolvimento da camuflagem e trincheiras destacam e caracterizam essa nova fase da “arte do conflito”, passamos então a ter uma estilística militar que privilegia células menores e mais ágeis de batalha em relação às anteriormente citadas.

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05-08-2024 às 09h:17

*Sarah Santinelly de Miranda e Theo Augusto Apolinário Moreira Fonseca

Em diversas mitologias e construções culturais ao redor do mundo, a guerra é um aspecto presente e primordial. Ares no mundo grego, Odin e Týr no mundo nórdico e Set no Egito antigo são representações claras e divinas dessa tipologia. Já a cosmologia romana, essencial para nossa compreensão cultural, nos fornece duas figuras capitais e opostas: Marte e Minerva.

Filho de Júpiter e Juno, Marte tem o mês de Março consagrado em sua honra. Outrora designou-se à uma forte ligação com a prática agrícola, entretanto caminhou cada vez mais para as relações de batalha, era um dos deuses mais cultuados na romanidade. Sua irmã, Minerva simbolizava elementos distintos quando se tratavam dos contextos de conflagração militar, sendo comumente associada às práticas estratégicas. No conflito da Guerra de Tróia, nos é contado que os irmãos se colocaram de lados distintos no conflito, com Marte apoiando os troianos e Minerva sustentando os gregos.

Ora, então por onde caminham então esses deuses? Onde estão Marte e Minerva? E para onde irão no futuro? Admitindo as constantes mudanças históricas que perpassam durante toda a linha do tempo, a sistematização dos conflitos bélicos, modernos, passam por análises geracionais na historiografia marcial. Para entender suas perspectivas de futuro, é essencial que entendamos seu passado e seu constante desenvolvimento, para tentarmos palmear ao que se destinam.

Partindo da 1ª Geração da Guerra moderna, temos o Tratado de Vestfália em 1648, assinado entre suecos, germânicos e francos. Nesse momento, acabara por findar à Guerra dos 30 anos e estabelecia os parâmetros a serem dados em relação ao conceito de Estado-nação e também da própria soberania estatal. Luís Nuno da Cunha Sardinha Monteiro, em sua obra Guerras de 4ª geração, registra que em decorrência disso, veio a fixação da responsabilidade estatal no trato das forças militares, concedendo unicamente aos Estados o Direito à Guerra. O caráter volúvel e instável das organizações militares no contexto anterior ao tratado era notável, o entendimento dos grupos militarizados servindo aos nobres e clérigos passou a ser incompatível com a realidade trazida a partir da 1ª Geração.

Segundo Monteiro, a partir do desenvolvimento desse demarcador, a transferência da responsabilidade militar para o seio estatal formou exércitos maciços, grandes e ordenados que podem ser traduzidos nas Guerras Napoleônicas, por exemplo. Essa estilística marcial seguiu-se em conflitos como a Guerra dos Sete Anos e transplantou-se inclusive na Guerra Civil estadunidense, onde atestam nos momentos finalísticos do conflito a necessidade de superação das táticas de 1ª Geração. Neste momento, demarcava-se no horizonte a transição para a 2ª Geração.

O desenvolvimento da camuflagem e trincheiras destacam e caracterizam essa nova fase da “arte do conflito”, passamos então a ter uma estilística militar que privilegia células menores e mais ágeis de batalha em relação às anteriormente citadas. O conflito que ilustra este momento é a 1ª Guerra Mundial, em especial, no destaque do trincheiramento. Posteriormente, mais uma realidade impõe-se na face geracional, com o advento das táticas da Blitzkrieg surge então a 3ª Geração da Guerra.

A partir de 1939, a ideia da manobrabilidade das tropas passa a superar as táticas de trincheira, a estaticidade acabará por ser superada no massivo ataque alemão. Naquele momento, a velocidade e mobilidade sobrepunham as táticas militares lineares, sendo assim, a sinalização e representação fundamental desse conflito figurava nos eventos da 2ª Guerra Mundial. O choque geracional com esse momento estaria por vir somente no início da década de 90, quando as manobras de insurreição passariam a aflorar.

Não obstante e materializada na Guerra do Afeganistão, a 4ª Geração envolve diversos aspectos da sociedade, transcendendo a segmentação militar e realizando a imersão da Sociedade Civil nas ações conflituosas. O enfraquecimento constante do inimigo seja por métodos físicos ou psicológicos ligados ao terror, marcam este momento. Após os 4 momentos descritos, o questionamento é se já estamos vivendo outro choque geracional e se o advento digital resignifica os instrumentos bélicos e a própria guerra?

A partir dessas instigações é notável que hoje o mundo transforma-se em uma velocidade ímpar, as mais plurais forças, entidades e instituições tem constantemente se convertido em “cyber” elementos, chega a ser indissociável na perspectiva de Klaus Schwab, os contextos biológicos, digitais e físicos nessa realidade. Por exemplo, a democracia é inevitavelmente transmutada em uma ciberdemocracia, de tal forma que se tornou impossível ser pensada sem os elementos tecnológicos, na mesma medida, os aspectos cidadãos seguem no mesmo ditame convertendo o conceito de cidadania em uma cibercidadania. No contexto da guerra a lógica mantém-se e o protagonismo do ciberespaço é notável com dados e algoritmos assumindo papel central nos ditames militares.

A Era Cibernética se apresenta então em uma escala exponencial, as realidades novas no contexto da conflagração marcial também se impõem de forma vital. O termo ciberguerra deriva da junção entre os termos cibernética e guerra, demarcando aquelas guerras orquestradas e travadas no ambiente virtual. O comando, controle e gestão de dados assume protagonismo bélico em um universo que inverte a lógica mercadológica da escassez, já que pensando na disposição de dados e algoritmos, quanto mais desses objetos o agente possui, mais poder e capacidade de operabilidade ele detém. Essa realidade, cria um campo de guerra não-física onde ataques sofisticados poderão ser operados visando desestabilizar economias, manipular informações e causar danos sem disparar um único tiro, onde soldados e operadores poderão se distanciar do campo de batalha tradicional, conforme aponta Andrew Korybko na obra “Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes” de 2018.

Nessa toada, com o exponencial melhoramento e impacto dos ataques cibernéticos ressaltam a urgente necessidade de regulação da ciberguerra para proteger a segurança global e garantir a estabilidade no ciberespaço. A ausência de normas claras e acordos internacionais sobre o uso de força cibernética pode levar a escalonamentos e à proliferação de práticas destrutivas que afetam tanto Estados quanto civis. A regulamentação pode proporcionar um quadro legal que define regras e limites para ações ofensivas e defensivas, promovendo a responsabilidade dos atores cibernéticos e facilitando a cooperação internacional para a resolução de conflitos.

Dessa forma, mesmo com as necessidades anteriormente citadas, as forças militares já se organizam e passam a contar com fortes elementos de ciberdefesa e cibersegurança. À exemplo, o Exército Brasileiro (EB) que já debate de forma ostensiva o tema e passa a contar com elementos como o Setor Cibernético, o Comando de Defesa Cibernética e o Simulador de Ações Cibernéticas (SACI), ademais, a preocupação com as temáticas de inovação são descritas no Plano Nacional de Defesa onde figura a seguinte citação dentre os objetivos: “o adequado aparelhamento das Forças Armadas, empregando-se tecnologias modernas”. Essa preocupação envolve uma corrida tecnológica e geopolítica pelo mundo, fazendo com que os dados, Inteligências Artificiais (IAs) e aparatos tecnológicos figurem enquanto o “novo petróleo” desses tempos.

Além do acompanhamento difícil desses avanços, outra questão que nos defrontamos toca o próprio monopólio do Direito à Guerra para os Estados, conquistado durante o Tratado de Vestfália. Vive-se hoje, um ambiente onde a própria imposição da soberania e da estatalidade é desafiada no ciberespaço, onde forças privadas protagonizam e rivalizam com a presença estatal seja no universo digital quanto no universo militar, com a presença de empresas como a “Blackwater” e de agrupamentos de mercenários nos contextos marciais. A autonomia de cada nação no ciberespaço é uma discussão interessante, podendo ser destacadas as posturas russas, chinesas e até mesmo estadunidenses quando se trabalha o desenvolvimento de softwares e mecanismos próprios. A realidade é que a corrida tecnológica passa a ensaiar um teatro geopolítico nos ditames da Guerra Fria, onde a corrida pelo subterfúgio digital é cada vez mais notável.

Portanto, nota-se que o futuro dos conflitos militares está cada vez mais entrelaçado com a ciberguerra, refletindo uma transição significativa na natureza dos combates. À medida que a tecnologia avança e a dependência de sistemas digitais cresce, os conflitos militares provavelmente se concentram cada vez mais nesse universo, onde a capacidade de infligir danos e manipular informações, dados e algoritmos se torna um fator crucial para o sucesso estratégico. O desenvolvimento de novas tecnologias, como as IAs e a computação quântica, poderão intensificar esses desafios, criando cenários mais complexos e imprevisíveis. A guerra no ciberespaço não apenas redefine o conceito de combate, mas também exige uma adaptação contínua das estratégias de defesa e políticas de segurança. No futuro, os conflitos militares tenderão a incorporar uma combinação de operações cibernéticas, guerra convencional e estratégias híbridas, tornando imperativo que nações e organizações adotem uma abordagem integrada para enfrentar as ameaças emergentes e garantir uma possível paz em um mundo cada vez mais digitalizado

*Bacharel em Direito (PUC) e membro do grupo de Estudos Estratégicos Raul Soares. É graduanda em Ciências do Estado (UFMG) e se especializa em finanças públicas (ECCPPA). É advogada de direito público e analista jurídico-administrativo (TCE).

**Graduando em Ciências do Estado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Editor-Chefe da Revista de Ciências do Estado (REVICE). 

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