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Para bom cancelador, meia palavra basta!

Para bom cancelador, meia palavra basta!

Só se cancelam os canceláveis, aqueles que contrariam os “donos do poder”, e têm falas e gestos copiosamente recordados e divulgados, para que seja possível “demonizá-los”.

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06-08-2024 às 08h:50

Sheila Alves de Almeida * Philippe Oliveira de Almeida **

Em tempos de Olimpíadas, um ancião da narração esportiva tratou com “escárnio” uma atleta prodígio do skate feminino após uma incrível manobra que lhe rendeu a maior nota brasileira na modalidade. Em questão de horas o bordão “você é ridícula” foi replicado na Web. Fãs da Fadinha, insatisfeitos com o “xingamento”, protestaram. Com receio de ser cancelado, o repórter esportivo veio a público justificar a expressão: "Lá nos Estados Unidos eles usam esse “ridiculous” como uma coisa fora do padrão, acima da média, de um nível muito alto". Não é a primeira vez que esse locutor se sente intimidado pelo público.

Em outra ocasião, chegou a pronunciar no programa ao vivo que seria chamado no RH. Ele sabia que seus comentários poderiam gerar uma cascata de menções e, consequente demissão sumária. Esses eventos fazem com que os programas pareçam iguais. Deliberadamente, os falantes desistem de algumas palavras, fazendo com que o mundo seja instituído de um discurso autoritário, infalível, incontestável, irrevogável. Um mundo estagnado e estranho à nossa existência que tem ou deveria ter como princípio o diálogo.

Em nome da “tolerância” – de um discurso inclusivo, “não-violento” e “politicamente correto” – temos adotado práticas intolerantes, excludentes, autoritárias e policialescas de patrulha moral. Todos os que, na vida pública e privada, deixam (por opção ou desconhecimento) de adotar uma performance “assepsiada”, “neutra”, “pura”, correm o risco de ser achincalhados na internet. A lógica, como bem frisou o filósofo coreano Byung-Chul Han, é a do “enxame”: uma multidão de perfis anônimos – muitos dos quais são “fake” – zumbindo, em uníssono, palavras de ordem, geralmente com o fito de pôr em dúvida a integridade do cancelado. Não há direito ao contraditório e à ampla defesa: o pecador – o raciocínio, aqui, é religioso, não nos esqueçamos! – deve expiar suas culpas através de uma “caminhada da vergonha”, para o regozijo dos justos, dos bons, dos imaculados. Muitos canceladores, ironicamente, creem piamente que estão agindo em nome de Marx (e da Revolução Cultural), quando, na verdade, estão apenas replicando Santo Tomás de Aquino: “Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação”. “Et te laudémus et glorificémus per Filium tuum Iesum Christum...”

Muitos defendem a ideia de que cancelamentos seriam movimentos “espontâneos”, reações (justas ou injustas) de grupos oprimidos que, graças à internet, finalmente ganharam voz, e agora conseguem se insurgir contra posturas preconceituosas e discriminatórias de figuras em posições de poder. Seria, então, um ato legítimo de reivindicação política. Ledo engano! Atores e jornalistas famosos seguem fazendo piadas racistas e homofóbicas, escritores e pesquisadores renomados continuam cometendo assédios sexuais, empresários ainda defendem, impunemente, o trabalho escravo. Uma conhecida professora, que, há poucos anos, se manifestou reiteradamente contra as ações afirmativas e as cotas étnico-raciais, hoje roda o país dando palestras sobre... enfrentamento ao racismo e medidas de inclusão da população negra no Brasil!

Só se cancelam os canceláveis, aqueles que, por alguma razão, contrariam os “donos do poder”, e têm falas e gestos capciosamente recordados e divulgados, para que seja possível “demonizá-los”. É preciso tempo e dinheiro, articulação política verticalizada, contatos em altas cúpulas, para produzir um cancelamento “espontâneo”. No mais das vezes, as bases só “mordem a isca”, num efeito manada, replicando acriticamente estratégias de destruição da imagem alheia fabricadas “de cima”.

“A vida depois do tombo”, documentário sobre a canceladíssima cantora Karol Conká foi um negócio oportuno sobre como a vida do cancelado se transforma em entretenimento. Após sua polêmica passagem pelo BBB, Karol Conká foi sistematicamente atacada pelo “enxame”, teve sua vida pessoal devassada e sua carreira bastante comprometida. Ora, muitos ‘brothers’ tiveram atitudes similares – ou piores – que as da artista, quando viveram na “casa mais vigiada do Brasil”, e acabaram sendo “perdoados” pelo público. Mas Karol Conká é uma mulher negra. Repito: só se cancelam os já cancelados, os que não se acobertam sob séculos e séculos de privilégios.

Inspirada na experiência da rapper, em 2021, Glória Groove, em um videoclipe, representou a cultura do cancelamento como um circo de horrores. “A queda” acena para os cancelamentos e os canceladores que repetem comportamentos de ódio e zombam do sofrimento alheio. É o juízo moral que aponta os deslizes cometidos e os amigos perdidos. A música é carregada de críticas aos ataques digitais dos canceladores que, vivendo às escondidas no mundo midiático, fazem parte de um tribunal de julgamentos. As palavras da artista ecoam e levantam um debate importante sobre o processo de exclusão dentro e fora do mundo digital. “A queda” é uma crítica social que atinge a todos: celebridades, políticos, advogados, médicos, professores e alunos. Para ser publicamente envergonhado e para sempre marcado, basta que, com ou sem razão, você não faça parte do mundo das “ideias politicamente corretas”.

No filme ‘Tár’ (estrelado pela brilhante Cate Blanchett), uma mulher talentosa, regente e professora de música, é acusada de assédio moral e sexual, e é ostracizada. A rapidez da opinião pública em condená-la está diretamente ligada ao fato de que sua persona sempre foi vista como “politicamente incorreta”. Como a personagem observa, numa aula de música: “O narcisismo das pequenas diferenças leva-nos ao mais chato conformismo”. É o “narcisismo das pequenas diferenças” que nos leva a repudiar publicamente quem vota diferente, fala diferente, se veste diferente... Há, vale dizer, alguns paralelos entre ‘Tár’ e ‘Morte em Veneza’, o clássico livro do bastante cancelado Thomas Mann. A regente de 'Tár' especializou-se em Mahler, figura na qual Thomas Mann se inspirou para escrever sua novela. Tal como o protagonista de Mann, Tár é uma artista egocentrada e obcecada com a própria arte. E, tal como ele, Tár se apaixona loucamente por uma figura mais jovem (misteriosa e altiva), ao ponto de, mesmerizada, não se dar conta de que a peste (ou, no caso do filme, o "cancelamento") se aproxima.

Nas instituições, onde diferentes grupos disputam espaços de poder, talvez a cultura do cancelamento tenha suas origens nas fofocas de corredor. Nesses lugares, as vozes reverberam sussurrantes “de boca em boca” igualmente motivadas pelo juízo moral. Mas, com a amplificação e o alcance das mensagens em redes sociais, é comum que o desgaste da imagem da pessoa ocorra no Whatzapp, que replica em milhares de vezes e, em questão de segundos, o modelo de comportamento tido como (in)desejado. Nas redes sociais, um exemplo não muito recente, mas devastador, foi o de um acadêmico de Santa Catarina que fez de sua morte um ato de protesto contra o ultraje de ser acusado, preso e exposto a uma opinião pública cheia de ódio. Mesmo considerado inocente, o estrago em sua imagem lhe pareceu irreversível. Mas, em geral o cancelamento na academia não gera notícia. Enquanto o cancelamento para os famosos ocorre de modo escandaloso, nas instituições ocorre de modo sutil. Nesses lugares, em geral não se tolera um voto divergente, não se suporta a convivência com a formação diferente, abomina-se quem fala diferente, quem discute e faz análise de seu próprio trabalho. Na materialidade das relações cotidianas, o professor “politicamente correto”, muitas vezes tomado como protótipo de “bom professor” é, por vezes, individualista, descomprometido com o ofício de ensinar distante dos compromissos de um intelectual orgânico. Não raro, são esses os justiceiros morais.

Frequentemente são mulheres, homossexuais e negros os alvos do cancelamento nas instituições. E muitos fazem parte desse sistema de opressão hierárquica sem se dar ao trabalho de buscar a origem do discurso oficial e do poder monológico.

O desenho animado ‘South Park’ – produção que está no ar desde 1997 – brindou-nos com um dos mais interessantes retratos da cultura do cancelamento na universidade, o Diretor PC. O Diretor PC é um homem hétero, branco e musculoso, que atua como professor. Ele apresenta a si mesmo como um “justiceiro social”. Não tem nenhum compromisso real com comunidades marginalizadas e oprimidas, mas se vale do “politicamente correto” (daí seu nome) para fazer bullying contra outros personagens do desenho. Com frequência, espanca pessoas – inclusive crianças – que dizem coisas que considera inapropriadas, ou convoca sua legião de seguidores para atacarem indivíduos “ostracizados”. A retórica da “defesa das minorias”, aqui, é claramente empregada como uma maneira, não de empoderar grupos subalternizados – mulheres, negros, homossexuais e transexuais etc. –, mas para conservar o domínio de um sujeito que se arvora no direito de REPRESENTAR esses grupos, falar EM NOME DELES (trabalhando, inclusive, para silenciá-los). O Diretor PC é a expressão cabal da “indignação seletiva” que, hoje, aterroriza nossas instituições de ensino.

Esse espírito persecutório tende a anular as diferenças, na universidade – ou a manter apenas as diferenças QUE NÃO FAZEM DIFERENÇA, que são inócuas, que não levam ao debate e à divergência construtiva. Arrastamos toda e qualquer controvérsia teórica ou política para o pântano da querela moral, onde o mundo pode ser dividido, de forma binária, em “bons” e “maus”. E curiosamente, essa violência recai, na maioria das vezes, contra figuras progressistas, comprometidas com lutas sociais relevantes. O docente de extrema direita que sente nostalgia da Ditadura Militar raramente é confrontado. Recentemente, quatro colegas de esquerda – uma mulher e três homens gays – foram virulentamente perseguidos nas instituições onde lecionam, sob o argumento de que não seriam suficientemente “inclusivos”. Hoje, convertemos o processo de ensino-aprendizagem em uma relação de consumo (e "o cliente tem sempre razão!"). Tratamos pesquisadores mais antigos como prestadores de serviços, e surtamos caso não pareçam alinhados a nossas próprias agendas. Parece uma nova vanguarda progressista dilatando o espectro de nossas demandas políticas. Mas não é não: é só a conversão do discurso ideológico em PRODUTO, a submissão da militância a uma obscena retórica mercadológica ("se não concordo contigo, dou dislike, te desmonetizo").

Para os canceladores de plantão, a exacerbação das atitudes do outro é a tônica da espetacularização. A ideia é criar uma narrativa em torno de atos polêmicos ou mesmo criar mentiras que parecem verdade, cujo propósito é o apagamento do enunciado e evidência dos atos do enunciado. Desse modo, na academia os enunciadores constroem um ethos de autoridade que não deixa dúvidas sobre o ritual de cancelamento.

Na era da informação, as instituições de ensino precisam se consolidar como lugar do diálogo livre e interativamente construído. Não queremos dizer com isso que posturas e representações homofóbicas, racistas e preconceituosas devam ser aceitas. Mas não podemos nos arrogar-nos no papel de instância judiciária. É preciso ter em mente que quando um professor ou estudante é adjetivado com palavras que remetem à “caminhada da vergonha” o resultado é a aniquilação do sujeito. Contudo, em um mundo em que os interesses são diversos, a vida não se apresenta com nitidez. É confusa, contínuo processo de leva e traz, de vir a ser. Considerando que a pergunta é o que move a ciência, os questionamentos sobre as possibilidades de injustiças não parecem ecoar nesse terreno da política do cancelamento. A rápida disseminação da informação coaduna com a lenta aprendizagem de uma leitura e escuta crítica. A guerra contra a cultura do cancelamento clama pelo embate de vozes, pela face viva daquele que desafia e desconfia. É nesse sentido que, contra a cultura do cancelamento, é fundamental que estimulemos a cultura diálogo.

*Professora Associada do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação no Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ICHS-UFOP. Formada em Pedagogia, com Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutorado pela Universidade de São Paulo.

**Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ.

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