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Os dias difíceis de Delfim, czar da economia

Os dias difíceis de Delfim, czar da economia

O ministro que assinou em 1968 o AI-5, o ato que inaugurou os Anos de Chumbo no País, foi também o deputado federal que, 20 anos depois, chancelou a Constituição de 1988

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25-08-2024 às 09h:19

Manoel Hygino dos Santos*

Em 13 de agosto, dia supostamente aziago cá no Brasil, os jornais publicaram a notícia de que Antonio (sem acento) Delfim Netto (com dois tês), em São Paulo, aos 96 anos, havia falecido. O óbito fora, no dia anterior, no Hospital Israelita Albert Einstein, onde se encontrava internado, em face de agravamento do seu estado de saúde. Sem apontar exatamente a causa mortis, as folhas só aduziam que ele deixara filha e neto.

O parágrafo seguinte fornecia mais elementos: Delfim foi figura complexa. O ministro que assinou em 1968 o AI-5, o ato que inaugurou os Anos de Chumbo no País, foi também o deputado federal que, 20 anos depois, chancelou a Constituição de 1988, considerada uma das mais democráticas do planeta. Ele foi o homem forte dos generais durante o regime militar (1964 -1985) e, quase duas décadas depois, um dos principais interlocutores de Lula nos dois primeiros mandatos do ex-metalúrgico.

Recentemente, o veterano e prestigioso jornalista mineiro Acílio Lara Resende publicou oportuno artigo, bem ao seu estilo, sob título “Morre Delfim Netto, o pai do milagre que não houve”, evocando o personagem importante, homem forte da economia no governo militar, quando o país registrou elevadas taxas de crescimento, mas observando que ele ficara marcado por ter assinado o AI-5.

O articulista lembrou que, embora economista, Delfim nunca conseguiu esconder a sua atração pela política, tanto na ditadura quanto na democracia. Bom proseador, se bem entrevistado, não se deixava levar pelas perguntas dos entrevistadores. Ao contrário, procurava sempre conduzi-los contando, para isso, com sua loquacidade. Observou-se, que o jornalista Élio Gaspari dizia que Delfim “movia os cordões do poder com frieza". Triunfou e fracassou”.   

Dias atrás, o economista Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do BNDES e do IBGE, declarou: “Há economistas para todos paladares e plateias. Mas são muito raros os que conseguem emocionar e mobilizar tão universalmente quanto o mestre Delfim Netto. Onde quer que chegasse, virava o centro das atenções. Tinha o magnetismo e absoluto controle do binômio corpo-verbo. Administrava sua própria figura diferenciada, professoral, conjugando aquele percuciente olhar, ligeiramente estrábico, com domínio perfeito das sacadas ferinas e das observações de final inesperado, transformando o mais soturno dos temas em algo possivelmente hilário”.

Décadas de atuação

As taxas de crescimento foram superiores a 9% ao ano. Ao assumir, Delfim anunciou o tabelamento e a redução de juros e ampliação do crédito para combater a inflação e acelerar o crescimento. Aumentou o gasto público e incentivou investimento privado nas indústrias.

A inflação caiu 19,2%, e o poder aquisitivo da classe média se expandiu. Foi época de obras grandiosas, como a Transamazônica, ponte Rio-Niterói e Itaipu. Mas a dívida externa aumentou quatro vezes, o valor real do salário mínimo caiu, e a população mais pobre viu despencar sua participação na renda nacional. Delfim passou a ser acusado de “adulador de banqueiros” e responsável direto pelo arrocho salarial e pela recessão”.

Após o milagre, o economista admitiu que o modelo de sua gestão não levara em conta a participação da sociedade, agravando a distribuição de renda. “Nós nos distanciamos do povo”, afirmou.

Durante os dois primeiros mandatos de Lula, o economista contribuiu com políticas sociais de gestão e tornou-se um dos principais interlocutores do governo. “Delfim participou muito da elaboração das políticas econômicas daquele período. Quando o adversário político é inteligente, nos faz trabalhar para sermos mais inteligentes e competentes”, afirmou Lula.

Ocupando cargos relevantes no período militar de 21 anos, Delfim se portou com desinibição, marcando presença nos grandes acontecimentos.

É, então, que se aprova, com apoio de Delfim o AI-5, que conferia amplos poderes ao executivo para suspender os direitos políticos e o habeas corpus, institucionalizando-se a repressão.

Houve intensa atividade contra os detentores do poder, mediante protestos nas ruas e invasões no campo.  Aumentou o número de prisões, registraram-se mortes pelos aparelhos de segurança do Estado, mas Delfim continuou, mesmo quando diplomatas estrangeiros foram sequestrados pela esquerda. É o período do “milagre econômico”.

Antonio Delfim Netto, que flertara com o socialismo na juventude, tornou-se imperador da economia brasileira em 15 de março de 1967, com a posse do presidente Costa e Silva. Órfão de pai, trabalhou desde os 14 anos, por muito tempo como contínuo da Gessy Lever.  Desencantado com os lentos progressos, conseguiu entrar para a Faculdade de Economia da USP, elegeu-se presidente do diretório acadêmico, pondo sua capacidade de liderança em ação. Não estagnou.

 No entanto, começara a aparecer efetivamente em 1967, quando se tornou o mais jovem ministro do País, com 38 anos, assumindo a pasta da Fazenda do presidente Costa e Silva, em que ficou até 1974. Ao término da gestão de Emílio Garrastazu Médici, já se fizera conhecido suficientemente de todos os segmentos da população, considerado e proclamado o “czar da economia brasileira”. Assumira todos os riscos da empreitada, mas, também alvo de elogios acalorados e críticas ferozes. Foram treze anos no período da ditadura. Após servir a todos os governos militares a partir de 1964, seguiu trabalhando em seguida nas políticas sociais de Lula, de 2002 a 2010.

O milagre

Em agosto/2024, o deputado Márcio Moreira Alves, um dos pivôs de oposição ao governo e do AI-5, já falecera. Registrara ele que, em 1968, começara o “milagre”, baseado na concentração de riquezas e ampliação do mercado de bens industriais duráveis, como automóveis e eletrodomésticos. A expansão do crédito ao consumidor levou a classe média ao paraíso.

O próprio Márcio, porém, anotara que, em 1968, as agremiações de esquerda, nascidas de sucessivas cisões do PCB ou da vertente católica do pensamento socialista, representada pela Ação Popular, optaram pela luta armada contra o regime militar.

Foram levados à morte muitos dos mais inteligentes e generosos líderes da juventude, enquanto nascia em Osasco, um novo tipo de sindicalismo baseado em comissões de fábricas e capazes de mobilizar as elites da classe operária dando origem às centrais sindicais hoje, inclusive o PT.

Contingentes de brasileiros e observadores estrangeiros opinavam que os ricos estavam ficando mais ricos e os pobres mais pobres: o desenvolvimento do período foi visto como “desenvolvimento perverso”. Gritava-se que o desempenho da equipe de Delfim Netto, a partir de 1968, favorecia as classes dominantes, como afirmava Márcio Moreira Alves. Os políticos de oposição, parte da burguesia, economistas e jornalistas voltados para o social, o sindicalismo dos campos e cidades se enraiveceram, e apelidaram Delfim de “gordinho sinistro”. Mas ele continuou dando cartas e respeitado, alongando-se no tempo, confiante e bonachão. Venceu as adversidades até perder forças e, finalmente, dar adeus ao perder o poder e a vida.    

*Da Academia Mineira de Letras e da Associação Nacional dos Escritores

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