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Orgulho e preconceito em junho

Orgulho e preconceito em junho

Por isso, muitos espectadores desavisados recorreram às redes sociais para denunciar a série por “homossexualizar” a obra-prima de Rice. “Quem lacra não lucra!”

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18-07-2023 às 07h:52

Phillipe Oliveira de Almeida*

Junho – “o doido e gris seteiro, com seu capuz escuro e bolorento”, na descrição de Alceu Valença – chegou e partiu. É conhecido como o Mês do Orgulho LGBTQIAP+, (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros/Travestis, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e outros) em homenagem à Rebelião de Stonewall (série de protestos que tomaram as ruas de Nova Iorque após uma violenta batida policial no bar gay “Stonewall Inn”, em 28 de junho de 1969). Nos últimos anos, o “relógio lento” e o “punhal de lesma” do mês de junho – que marca o início do inverno, no Hemisfério Sul – foram chacoalhados por diversas iniciativas, públicas e privadas, com o fito de promover a aceitação da diversidade sexual e de gênero.

No Brasil, as cores das festas de São João se mesclaram às das paradas do orgulho LGBT que, ao longo das décadas, começaram a pipocar por diversas cidades: anarriê, entendidos, junho é pra ferver e bater coxa, sem finiquito ou carão! Mas, em 2024, as ações voltadas à população “queer” no Mês do Orgulho foram relativamente tímidas, em comparação com anos anteriores. Com o avanço de agendas reacionárias no debate público, muitas marcas estão tentando se dissociar de discussões relativas a diversidade e inclusão, e mesmo partidos políticos “progressistas” vem flertando com lideranças neopentecostais.

Nesse cenário, a estreia de três séries, nos canais de “streaming”, manteve vivo o debate, no mês de junho, sobre a afirmação e o empoderamento da “comunidade gay”: a animação ‘X-Men “97”, que entrou em cartaz em 20 de março; “Entrevista com o vampiro”, lançada nos EUA em 2022, mas que só chegou às telas brasileiras em 29 de maio de 2024; e a quarta temporada de “The Boys”, que começou a ser exibida no dia 13 de junho. As polêmicas que se seguiram às três estreias podem nos ajudar a refletir – passado o mês de junho, “chumbo de um velho pensamento”, ainda para remetermos a Alceu Valença – as potencialidades e os limites das campanhas publicitárias ligadas ao Orgulho LGBTQIAP+, em um tempo marcado por figuras como Donald Trump e Marine Le Pen.

Criadas por Stan Lee e Jack Kirby em 1963, as histórias em quadrinhos dos “X-Men” sempre tiveram por mote a discussão sobre discriminação e preconceito. Desde a sua fundação, a “Marvel Comics” – que edita as aventuras da equipe de super-heróis – conseguiu arregimentar novos leitores trazendo, para suas publicações, temas da atualidade. Numa era marcada pela contracultura e pelo combate à segregação racial, narrativas sobre uma nova raça – a mutante –, temida por ser diferente, permitia à Marvel Comics “surfar na onda”, alinhar-se ao “Zeitgeist”. Diversas comunidades que reivindicavam inclusão – e não apenas “minorias” étnico-raciais – podiam identificar-se com os “filhos do átomo”, projetando-se nas histórias dos X-Men. Ora, em 1992, foi lançada a primeira série animada dos X-Men, com roteiro excepcionalmente fiel aos quadrinhos. A produção televisiva – que permaneceu em cartaz até 1997 – apresentou os mutantes a uma legião de novos fãs, crianças e adolescentes que, episódio a episódio, acompanharam a jornada dos X-Men na luta contra a intolerância. A aguardada “‘X-Men “97” é continuação direta desse empreendimento, mas consegue, com habilidade, atualizar o universo dos X-Men de sorte a refletir um mundo atravessado pelo avanço da extrema direita (destaque para Morfo, que em diversos momentos manifesta interesse amoroso por um dos mais célebres personagens da Marvel, o Wolverine). Após participar de uma invasão à sede da ONU – parecida com o ataque ao Capitólio, em 2021, e com a tomada da Praça dos Três Poderes, em 2023, uma liderança anti-mutante afirma: “Sabem o que eu odeio na sua raça? Vocês agem como se sofressem muito. As pessoas normais sofrem também – até mais. Só temos a dignidade de não ficar chorando o tempo todo. Entende?

É a choradeira”. A observação é, em tudo e por tudo, similar a discursos de “incels” e “red pills” contra o “mimimi” e a “lacração”: com efeito, os vilões da série, em várias ocasiões, proferem comentários comuns em meio a grupos neoconservadores, hoje. Daí que muitos tenham acusado “X-Men “97”, brilhantemente roteirizada por Beau De Mayo, de “doutrinar” crianças e adolescentes enxertando “pautas ideológicas” em um desenho animado.

Críticas semelhantes foram feitas a “Entrevista com o vampiro”. Adaptação do primeiro romance de Anne Rice – conhecida por revitalizar a literatura de horror gótico –, a série apresenta-nos Louis de Pointe du Lac, um homem nascido na Luisiana do século XIX, e que, após ser transformado em vampiro pelo sedutor Lestat de Lioncourt, é tomado por crises existenciais. O tom homoerótico das histórias de Rice – herdeiras de “Carmilla: a vampira de Karnstein”, romance lésbico escrito em 1872 por Sheridan Le Fanu e que antecipa o trabalho de Bram Stoker – é patente. Essa dimensão mantém-se subentendida no filme de 1994, “blockbuster” protagonizado por Tom Cruise e Brad Pitt (poderia ser difícil, no fim do século XX, vender uma película centrada na paixão entre vampiros gays). Mas a série de 2022 escancara a porta, explorando os meandros do relacionamento conturbado e abusivo entre Louis e Lestat (com direito a várias cenas de “amor intenso” entre os rapazes). Por isso, muitos espectadores desavisados recorreram às redes sociais para denunciar a série por “homossexualizar” a obra-prima de Rice. “Quem lacra não lucra!”, muitos escreveram. A decisão de focar no envolvimento entre os dois vampiros faria parte de uma estratégia Woke (termo genérico utilizado pela direita estadunidense para designar pessoas que militam em prol da justiça social) com o objetivo de aliciar jovens e “promover a homossexualidade”. A produção televisiva optou por – com a anuência de Rice, diga-se! – trocar a etnia de Louis, que, de proprietário de escravos (no

livro) passa a empresário negro (na série). Essa escolha, que conferiu novas camadas ao personagem, agravou as críticas na internet, feitas geralmente por pessoas que nunca se incomodaram em ver Johnny Depp interpretando o índio Tonto em ‘O cavaleiro solitário’, mas se indignaram com a Estelar de Anna Diop (na série “Titãs”) e com a Ariel de Halle Bailey (no filme “A pequena sereia”).

Essas queixas também recaíram sobre a quarta temporada de “The Boys”, adaptação para a TV dos quadrinhos lançados por Garth Ennis e Darrick Robertson em 2006. “The Boys” retrata um mundo no qual, graças a experimentos científicos financiados por uma corporação multimilionária (a “Vought”), pessoas com poderes especiais começam a nascer. Longe de se tornarem super-heróis abnegados e compassivos – como os X-Men –, os indivíduos fabricados pela “Vought” usam suas habilidades para oprimir e aterrorizar o resto da humanidade, acobertados por uma massiva campanha publicitária. Desde os seus primeiros episódios, a série fez da relação entre “pessoas com super-poderes” e “pessoas normais” uma metáfora para a exploração burguesa no sistema capitalista. O Capitão Pátria – versão pervertida do Super-Homem, responsável por liderar os demais “super-heróis” – é o garoto-propaganda da “Vought”, e em diversos momentos flerta com ideias nazi-fascistas (chegando a ter um caso com uma figura, a Tempesta, criada, décadas antes, por cientistas vinculados ao Terceiro Reich). Todavia, muitos só se deram conta da natureza política do seriado em 2024, quando um dos protagonistas – o Francês, interpretado pelo charmoso Tomer Capone – revelou-se gay. Após a “saída do armário” do personagem, alguns fãs – que, pasmem!, torciam pelo Capitão Pátria e acreditavam que o programa era uma crítica ao “politicamente correto” e ao “identitarismo” – começaram a, retroativamente, identificar “traços da ideologia “Woke” disseminados na série.

As controvérsias recentes em torno de “X-Men “97”, “Entrevista com o vampiro” e “The Boys” – que incendiaram o Youtube, o “Tik-Tok”, o “Twitter” e o “Instagram” – dizem muito sobre a nossa época. Eis um sintoma grave do analfabetismo político que ora grassa: muitos, à direita e à esquerda, estão plenamente convencidos de que grandes empresas como a “Disney”, a “ACM Networks” e a “Amazon Prime Video” (responsáveis pelas séries que comentamos aqui) têm um compromisso genuíno com a emancipação de gays, lésbicas, travestis e transexuais. Os “conservadores” acreditam que, após a Guerra Fria, comunistas se infiltraram no coração de grandes instituições capitalistas, e têm trabalhado para – fiéis às lições de Lucaks e Gramsci – destruir a sociedade de mercado garantindo a “hegemonia cultural”. Assim, obras como “X-Men “97”, “Entrevista com o vampiro” e “The Boys” seriam instrumentos em uma renovada “batalha cultural” entre Leste e Oeste.

Essa fantasia não difere, significativamente, da lenda hitlerista segundo a qual a URSS seria financiada por uma confraria de banqueiros judeus, comprometidos em minar o capitalismo “por dentro”. Já os “progressistas” imaginam que, em virtude da pressão exercida pela “sociedade civil organizada” (coqueluche de uma esquerda que desistiu da luta pela tomada do Estado), o capital está, gradual e inexoravelmente, se rendendo a demandas em prol da inclusão e do empoderamento de grupos vulnerabilizados. Se a revolução não é mais possível, a passagem do capitalismo ao comunismo poderia se dar através de reformas sistêmicas, que dia após dia trariam novas conquistas aos “descamisados”. Produtos de mídia como os que comentamos aqui seriam marcos num processo mais amplo de “conscientização”.

Facções de direita e de esquerda deixam-se seduzir pela ilusão de que conglomerados de mídia seriam, para o bem e para o mal, as melhores vias para a implementação de um programa socialista. Com isso, não atentam para o óbvio: vivemos em um tempo no qual “diversidade” e “inclusão” se transformaram em “commodities”. Empresas não abraçaram o Mês do Orgulho – e bandeiras arco-íris – por uma real preocupação com a promoção de melhorias nas condições de vida da população LGBTQIAP+; o fizeram a partir de um cálculo de custo-benefício econômico. Daí que, em tempos sombrios, estejam mais do que dispostas a “largar a mão” das “minorias” que afirmam apoiar. O neoliberalismo conseguiu converter em mercadoria boa parte das pautas político-ideológicas que eclodiram no Ocidente a partir dos anos 1960 (com a Revolução dos Costumes, as demandas antidiscriminatórias etc.), esvaziando-as de sua dimensão subversiva e transgressora. Camille Paglia talvez seja a intelectual que melhor tenha apontado – em livros como “Vamps e Vadias” e “Sexo, Arte e Cultura Americana” – como os ideais insurgentes de “beatniks” e “hippies” foram lentamente transformados em inócuos apelos pela criação de espaços de tolerância e acolhimento em ambientes corporativos. “Os meus sonhos foram todos vendidos/Tão barato que eu nem acredito...” “Consciência social” tornou-se um bem de consumo – talvez, o maior bem de consumo do século XXI. Não compramos uma roupa exclusivamente por seu valor de uso – mas por ter sido confeccionada por uma fábrica que apoia as causas X e Y, patrocina as passeatas A e B, contrata pessoas que pertencem a esse ou aquele grupo vulnerabilizado. Hipertrofiamos a noção marxiana de “fetichismo da mercadoria”: nos dias que correm, o fetichismo É a principal mercadoria que consumimos. Mais: adotamos a ideia de que consumir ou não consumir – assistir ou não assistir “X-Men “97”, por exemplo – é o único ato político que nos resta. É por isso que debatemos o significado de desenhos animados como se estivéssemos discutindo a privatização de recursos hídricos ou a estatização da imprensa.

Não foram as séries de TV que se repolitizaram, fomos nós que nos despolitizamos.

“Follow the Money”: falar, a sério, sobre Orgulho LGBTQIAP+, para além das festas do mês de junho, implica em falar sobre propostas de redistribuição de bens e recursos que incluam essa população – o que pressupõe sonhar com um mundo no qual a “Disney”, a “ACM Networks” e a “Amazon Prime Video” já não mais existam. O resto é confete

* Phillipe Oliveira de Almeida é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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