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O ChatGPT vai à escola

O ChatGPT vai à escola

De um modo ou outro, é preciso que a escola reensine os alunos a se projetarem em seus escritos, a deixarem que a palavra volte a se impregnar por afetos, por desejos. É urgente

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25-07-2024 às 09h:27

Phillipe Oliveira de Almeida*

Vários educadores vêm reclamando do uso, por estudantes, de inteligência artificial na elaboração de trabalhos escolares, monografias de graduação, dissertações de mestrado e, até mesmo, teses de doutorado. Eu me solidarizo com o sofrimento de meus colegas, mas, como professor, devo dizer... queridos, a culpa disso tudo é, ao menos em parte, nossa!

É cada vez mais frequente que alunos, no ensino fundamental, médio e superior, recorram a mecanismos como o ChatGPT para fazer, por eles, atividades demandadas pelos professores. E é cada vez mais difícil, para os professores, diferenciar entre textos escritos por alunos e respostas dadas pelo ChatGPT. Você poderia, por exemplo, com 100% de certeza, dizer que as linhas que está lendo foram autenticamente redigidas pelo humanóide que assina a coluna, e não por um robô? Dia após dia, a ferramenta aperfeiçoa sua habilidade de escrever em linguagem natural, emulando nossa maneira de construir argumentos e expor ideias. Por esse motivo, muitos docentes tem exigido que as instituições de ensino (ou o governo) criem formas novas de policiar e punir esse tipo de “plágio”.

Ora, na minha modesta opinião, o esforço de meus colegas para proibir o uso de inteligência artificial nas escolas se assemelha às tentativas, dos ludistas do século XIX, de solucionar o problema do desemprego gerado pela automação industrial quebrando máquinas. Vivemos um momento sui generis: há poucas décadas, imaginávamos que, com o desenvolvimento tecnológico, relegaríamos aos robôs atividades mecânicas e repetitivas, ficando livres para realizar trabalhos “criativos”, como pesquisar, escrever, pintar, fazer filmes... Ledo engano! Hoje, máquinas pesquisam, escrevem, pintam e, até mesmo, fazem filmes por nós, enquanto que, em virtude da precarização das relações laborais e do colapso do Estado Social, um contingente cada vez maior de pessoas se encontra lançado ao subemprego, sem perspectiva de futuro (motoristas e entregadores de aplicativo etc.). Não é à toa que muitos intelectuais tem se dedicado, hoje, a discutir as implicações éticas, jurídicas e políticas do avanço tecnológico (é o caso, por exemplo, da brilhante professora Mariah Brochado). Tornamo-nos escravos de Moloque, coisificados por aparelhos eletroeletrônicos que se “pessoalizam”. Nessa conjuntura, é ingênuo crer que a sala de aula pode, candidamente, ignorar a presença da inteligência artificial em nosso cotidiano.

Mas o que podemos fazer, para impedir que os estudantes recorram à inteligência artificial? Minha sugestão: estimulá-los a utilizar a inteligência natural. O ChatGPT não é um dispositivo de pesquisa, mas um gerador de texto. O que ele faz é, rastreando na internet diversos escritos sobre o assunto demandado, montar, randomicamente, uma redação “nova”, feita da colagem (com sutis alterações) de redações já existentes. Peço ao ChatGPT: escreva um parágrafo sobre a diferença entre aracnídeos e insetos. O robô vasculhará a rede mundial de computadores atrás de outros textos que apresentem as mesmas palavras-chave – ‘diferença’, ‘aracnídeos’, ‘insetos’ –, e, por meio de lógica fuzzy, elaborará um trabalho “original” (uma espécie de “média ponderada” de outros trabalhos sobre o tema). Vejam bem, não é isso o que, ano após ano, estamos exigindo que nossos alunos façam, em trabalhos e provas? O professor do ginásio, na classe de Biologia, pede aos estudantes que apresentem as diferenças entre aracnídeos e insetos. O que ele espera, ao fim e ao cabo, é que a turma vasculhe enciclopédias (elas ainda existem?) compilando informações, e organizem uma resposta “própria” a partir dessa bricolagem. Mas, se peço aos discentes respostas maquinais, não posso me escandalizar ao vê-los recorrendo a... máquinas.

O que distingue o discurso científico e o não-científico? A curiosidade de descobrir coisas novas, disciplinada pelo rigor metodológico? O esforço para propor hipóteses e submetê-las a testes, formulando teorias diferentes à medida que a experimentação progride? Para muitos professores, o que efetivamente caracteriza o discurso científico é um componente de ordem “estética”. Pouco importa se o argumento decorre ou não de um trabalho criativo e sistemático de investigação, desde que seja apresentado numa linguagem “neutra”, “objetiva”, “impessoal”, “em terceira pessoa”, “sem adjetivações”. Não formamos pesquisadores, ou pessoas engajadas na produção de conhecimento (o fato de que, em pleno século XXI, ainda haja terraplanistas, atesta isso!); o que as instituições de ensino têm produzido é uma leva de replicantes, capazes de macaquear o jargão acadêmico, performar o “estilo” que alguns mestres acreditam que deva ser o da linguagem científica. Não é de se estranhar que, com a evolução da inteligência artificial, já não sejamos capazes de diferenciar a escrita “desafetada” que sempre cobramos de nossos alunos e os textos fabricados por robôs. Como o filósofo Roberto Mangabeira Unger observa: “Na educação, temos um ensino vidrado em enciclopedismo raso e decoreba como se o objetivo fosse transformar crianças brasileiras do século XXI em crianças francesas do século XIX”.

Se os trabalhos e as provas que o professor elabora podem ser facilmente respondidos por uma inteligência artificial... talvez o problema não esteja na inteligência artificial, mas nos trabalhos e nas provas elaboradas. É preciso muito ensaio para ser espontâneo: numa escola pensada como indústria, precisamos, como docentes, lutar para resgatar a atividade “artesanal”. Temos de surpreender nossos alunos com tarefas nos quais eles se vejam IMPLICADOS, nas quais eles se reconheçam, que demandem, deles, não respostas pré-fabricadas, mas a gestação de conceitos “pessoais”. A única forma de impedir o avanço da máquina sobre a sala de aula é incitar os alunos a se engajarem, emocionalmente, nas atividades realizadas. O que pode significar, entre outras coisas, a substituição do “texto dissertativo” por crônicas, diários, causos, uma escrita na qual o estudante encontra-se forçado a se COLOCAR. E os temas que, a princípio, não podem ser apresentados senão numa roupagem “isenta” e “desapaixonada”, que não podem ser debatidos em classe sob um olhar “humanizado”? Que a inteligência artificial se ocupe deles! Deixemos que os mortos enterrem seus mortos... Paulo Freire, Rubem Alves e “bell hooks” nunca foram tão atuais, em sua luta contra o ensino bancário.

Freud disse, certa feita, que educar, psicanalisar e governar são ofícios “impossíveis” – talvez, porque dependam da vontade do outro, que é sempre imprevisível e imponderável. Posso obrigar uma pessoa a me seguir, mas não posso forçá-la a DESEJAR me seguir – e o desejo de terceiros é o núcleo da tarefa de educadores, psicanalistas e governantes. Desconfio que, no futuro, apenas os ofícios “impossíveis” restarão; todos os demais serão substituídos por inteligência artificial. Podemos estar diante de uma tragédia, ou de uma oportunidade. De um modo ou outro, é preciso que a escola reensine os alunos a se projetarem em seus escritos, a deixarem que a palavra volte a se impregnar por afetos, por desejos. É urgente que nós, por meio de uma “pedagogia situada” (na terminologia da professora Júlia Ávila Franzoni), desmecanizemos a linguagem – e o pensamento! – de nossos discentes, de modo que suas vivências, particularidades e idiossincrasias aflorem. É o único antídoto possível contra o ChatGPT.

* Phillipe Oliveira de Almeida é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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