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Nascidos na foz do rio

Naquele mundo de água em muitas cidades já não há água potável. É o mar chegando de mansinho. Estamos pagando a conta com juros, correção monetária e multas

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23-06-2024 às 09h:49

João Capiberibe*

Nasci no Rio Charapucu, na ilha do Marajó. Paulo Mota Rocha nasceu na Ilha do Franco, no Arquipélago do Bailique. Somos viventes do boqueirão do Rio Amazonas.

Eu vi Macapá pela primeira vez aos sete anos, ele aos 14. Crescemos por aqui, nessa imensidão de água e floresta, embalando nossos sonhos e utopias no vai e vem da maré, íntimos com a natureza.

De tempo em tempo, nós nos atualizamos. Ontem, por exemplo, conversamos por mais de uma hora sobre os estragos que as mudanças climáticas estão causando nos lugares onde nascemos. É dessas nossas vivências que quero lhes falar.

Conheço Paulo há mais de trinta anos. Eu e Janete, minha companheira de vida e de luta, nos tornamos hóspedes frequentes dele e de Lúcia, sua esposa. A casa do casal fica na margem esquerda do Igarapé Franquinho, que despeja suas águas no Canal do Guimarães, por onde eu e Janete já passamos algumas vezes, de motor 40, debaixo de muita chuva e “marisia”.

O Canal do Guimarães é por onde o Rio Amazonas despeja parte de suas águas no Atlântico. É o lugar onde rio e mar se misturam, ninguém sabe onde um termina e o outro começa.

São doze horas de viagem de Macapá até a casa de Paulo e Lúcia. E só dá para ir de barco!

Fizemos nossa primeira visita por lá em 1989 e a última em 2022. Nesses nossos trinta e tantos anos de idas e vindas, cultivamos mais do que uma relação política; eu e Janete criamos laços profundos de amizade e carinho com as pessoas e a paisagem do Arquipélago do Bailique. Ao longo desse tempo, só em 2018, ouvimos falar pela primeira vez em água salgada impactando a vida das pessoas, creio que foi no Itamatatuba, comunidade que naquele ano, também pela primeira vez, ficou sem água doce para beber. Seus moradores foram apanhados de surpresa, ficaram atônitos.

Isto se deve a emissão de gases de efeito estufa que aumentou a temperatura do planeta, e consequentemente o nível dos oceanos, fazendo com que o mar avance cada vez mais rápido pelo Rio Amazonas. Esse fenômeno é agravado pelos extremos climáticos, resultando em danosas consequências para as comunidades ribeirinhas e ecossistemas locais.

A água salgada não parou no Itamatatuba; continuou avançando rio acima. No ano seguinte, chegou no Jupati e no Mamão. Dois anos depois, no Uruá. Ano passado, na foz do Macacoari. E vem vindo. Daqui a pouco, ela chega em Macapá. Quando?

Em nossa última conversa, Paulo e eu nos perguntamos: quando?

Eu previ cinco anos para o rio virar mar em frente de Macapá. Paulo disse que não levaria esse tempo todo, deu três anos para isso acontecer. Mas quem pode nos dizer com precisão é a ciência, que também já deve estar avaliando o tamanho do estrago que a água salgada já está e vai continuar causando aos bichos, plantas e pessoas que vivem na foz do rio. Mas enquanto as informações científicas não chegam, queremos, com base em nossa experiência de moradores e observadores dessa frágil região do planeta, comunicar que a salinização da água que hoje abastece Macapá tem data para acontecer, e não vai demorar. Mas atenção! A salinização atinge também os dezesseis municípios do arquipélago do Marajó, isto amplia a tragédia, elevando para um milhão de pessoas que, se nada for feito, ficarão como ficaram os moradores da comunidade do Itamatatuba, atônitos! Sem água para beber.

E tem mais, quase metade dos moradores de Macapá e Santana são abastecidos pela rede da empresa privada CSA (Companhia de Saneamento do Amapá), cuja captação por bombeamento é feita diretamente do Rio Amazonas, já no Arquipélago do Marajó o drama se amplia, 100% dos seus habitantes dependem da água doce do rio. Pior, por viverem em ilhas, seus habitantes não dispõem de fonte de água boa por perto, terão que “importar” de lugares distantes, o que inviabiliza sua permanência no arquipélago.

Dá para ter uma ideia do tamanho do problema?

Acho que não! É muito maior do que podemos imaginar hoje! Mas vamos cair na real: a conta da destruição ambiental chegou! Com juros, correção e multas. Uns mais, outros menos, não temos como escapar, todos teremos que pagar pela destruição que fizemos! Só pra me consolar! Eu fiz e continuo fazendo a minha parte.

* João Capiberibe é político, brasileiro, ex-prefeito, governador e senador

 
 
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