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Motorista de aplicativo: Desafios para o futuro do trabalho

Motorista de aplicativo: Desafios para o futuro do trabalho

Vários trabalhadores de aplicativo não percebem as jornadas de trabalho exaustivas a que estão submetidos, são precarizados, não têm direito a lazer, a se desconectar, não têm tempo livre. São sugados por uma lógica perversa de jornadas extenuantes

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05-08-2024 às 08:57

Daniela Rodrigues Machado Vilela*

Um tipo de trabalho comum na atualidade é o dos motoristas de aplicativo, caracterizado por relações laborais flexíveis. São prestadores de serviços sob demanda, guiados por uma gestão algorítmica de plataformas digitais, tal como a Uber.

A própria expressão “uber”, virou sinônimo do serviço propriamente dito. Não é incomum se dizer que se vai “pegar um uber”, em vez de dizer que se vai solicitar um “transporte por aplicativo”.

O discurso por detrás do trabalho por plataformas é muito atrativo: propaga-se a ideia de uma nova economia, mais moderna, inteligente e dinâmica nas relações laborais.

Preconiza-se que quem usa transporte por aplicativo não necessita possuir um automóvel, que seria possível conseguir um meio de locomoção de forma barata, rápida e segura. A “uberização” pressuporia uma forma de melhor utilizar as coisas. Ao invés de possuir, usar. Este é o slogan.

São discursos rotineiros: por que não ganhar um dinheiro extra com um carro que fica parado na garagem? Ou quem sabe, por que não sair de um trabalho enfadonho? Por que não ser seu próprio patrão ao invés de ter um chefe que controla seus horários? Ou ainda se questiona: por que não ter jornada de trabalho variável e flexível? Para que comprar um veículo, se a mobilidade pode ser acessada por um clique no aparelho celular?

Percebe-se, pela leitura acima como o discurso é atrativo, mas não bastam palavras sedutoras, existem os fatos e a realidade não é tão vantajosa assim, não é mesmo? Sim, motoristas de aplicativo têm horário de trabalho variável, mas renda também. Jornadas geralmente exaustivas e sem direitos laborais essenciais assegurados.

O grande segredo da uberização é a confiança que se estabelece por um sistema de reputação. Mas há riscos, há motoristas novos, trânsito caótico e tantos outros. Estes fatores não são objeto de preocupação por parte das empresas de aplicativo.

O autor “Trebor Scholz” em sua obra “Cooperativismo de Plataforma” assevera uma série de riscos e desafios para o futuro do trabalho quando o assunto é esta chamada “economia do bico”, que se trata de um trabalho precarizado, sem direitos, sob demanda, que monetiza uma relação de confiança entre motoristas e passageiros e que é intermediada por uma plataforma.

Não há preocupação com políticas redistributivas de renda para o futuro do trabalho. As empresas ambicionam maximizar seus lucros, sem qualquer responsabilidade ou solidariedade social. A missão empresarial hoje, mais que antes é propiciar lucratividade para os seus acionistas e apenas isto.

Uma moldura protetora do trabalho digno deveria existir em relação aos trabalhadores por aplicativo, portanto, o Direito do Trabalho necessita ter aplicação ampliada. Atualmente sua interpretação é restritiva.

O fato de o trabalho do motorista de aplicativo ser ou não subordinado não deveria sequer ser controvertido, pois a plataforma gerencia, controla este trabalhador e as corridas deste, sendo assim, há ingerência sobre o trabalho prestado.

Ademais, todos os trabalhos deveriam ser protegidos, independentemente se reúnem ou não os requisitos formais de uma relação empregatícia, já que todos necessitam invariavelmente de proteções trabalhistas.

Vários trabalhadores de aplicativo não percebem as jornadas de trabalho exaustivas a que estão submetidos, são precarizados, não têm direito a lazer, a se desconectar, não têm tempo livre. São sugados por uma lógica perversa de jornadas extenuantes em demasia de 10, 12, 14 horas, muitas vezes.

O sistema de reputação (notas atribuídas às corridas pelos passageiros), pode ser cruel e desleal. Quem avalia, pode fazê-lo como lhe aprouver. De outro lado, não há a alternativa de contestação por parte do trabalhador, que pode ser excluído da plataforma sem justificativa ou possibilidade de defesa por uma nota arbitrária ou injusta que lhe seja atribuída por certos passageiros.

A mobilização dos trabalhadores por aplicativo contra as precárias condições de trabalho é pouco provável, difícil de acontecer, pois estes não têm muita interação entre si, como os trabalhadores de carteira assinada, adstritos a um labor ordinário, que se encontram na hora do café, do almoço, no elevador, que num momento ou outro reclamam do trabalho e do patrão.

Trabalhadores por aplicativo estão presos a jornadas exaustivas, e não têm muito contato uns com os outros, se despolitizam e, desta feita, perdem o elemento gregário de um vínculo a um trabalho numa empresa, estão despregados de uma relação laboral de direitos e deveres que lhes concederia segurança. O empregado é uma categoria em vias de extinção, estar pregado a uma relação de trabalho é algo que vem se tornando raro.

Os trabalhadores por plataforma necessitam de um estudo sociológico à parte, pois a relação laboral a que estão submetidos é indiscutivelmente precária. Estes não estão submetidos a direitos trabalhistas e convivem com jornadas extenuantes de trabalho.

Para além disto, o que impressiona, na prática cotidiana são certas características muitas vezes reiteradas no comportamento destes trabalhadores. Parte significativa parece estar vivendo uma realidade paralela, se acham donos do próprio empreendimento, em sua maioria têm a percepção que ganham “razoavelmente bem”, são contra o gozo de direitos trabalhistas ou previdenciários, pois associam direitos a custos e, portanto, são contrários.

Parte destes motoristas não percebe que as plataformas descontam taxas altas, pois são ludibriados de um ponto de vista objetivo sobre o valor do percentual de descontos se 20%, 30% ou outro valor. No início da corrida eles costumam ter acesso a distância desta, seu tempo estimado de duração, o lugar de partida e destino do passageiro, porém a taxa descontada da corrida pelo aplicativo só é informada ao final desta. Também estão sujeitos a promoções variadas, ou seja, não têm uma percepção clara de quanto recebem efetivamente.

Quando se indaga a estes se vale a pena o que recebem, em sua maioria consideram satisfatório. Porém ao longo do diálogo, é perceptível, que o cálculo feito é do valor bruto recebido sem o combustível, não havendo uma contabilização de desgaste do carro, custo do seguro do veículo, plano de saúde, refeições e outros.

Percebe-se uma captura da subjetividade destes trabalhadores de modo muito particular. Trata-se de uma classe que não identifica, em sua maioria, o Direito do Trabalho como um instituto de proteção.

A grande satisfação desta classe é de não estarem sujeitos a uma jornada regular, hermética de trabalho. O fetiche é que se sentem patrões de si mesmos.

É um desafio enorme para o Direito do Trabalho conseguir estabelecer alguma comunicação efetiva com esta categoria. Caberia ao ramo laboral se preocupar menos com o enquadramento formal desta relação de trabalho e mais com o estabelecimento de um efetivo instrumental de comunicação eficaz.

Comunicar-se com esta categoria de trabalhadores é desafiador, pois caberia explicar os fatos de modo pormenorizado, por exemplo, quem paga os encargos trabalhistas são os empregadores. Entender que seu ato de labor gera lucro ao capitalista.

Não cabe se dizer que é imoral que o empregador tenha uma certa lucratividade quando contrata alguém, que perceba alguma margem de lucro. A questão é que os frutos do trabalho poderiam ser mais bem divididos entre quem labora e quem possui o empreendimento.

Enfim, na prática diária, nesta relação de trabalho específica, o desafio de entendimento é evidente. Para alcançar uma comunicação eficaz é fundamental decodificar a mensagem, se conhecer a priori os termos, conceitos, envolvidos na comunicação. Portanto, direitos não podem ser entendidos enquanto custos.

Os desafios de comunicação não devem ser naturalizados. As relações humanas dependem da capacidade dos indivíduos de se comunicarem e expressarem sua visão de mundo.

Porém, não se deve negar a realidade, vive-se um momento de grande precarização dos trabalhos, não obstante, existem alternativas e estas são palpáveis.

Vive o homem sob a égide da novidade com espaço de reverberação da discussão de alternativas que envolvam uma melhor divisão dos lucros advindos do trabalho e que se pressuponha a criação de sindicatos para os trabalhadores informais.

O futuro não deve ser pensado enquanto viver para sobreviver, mas de um efetivo bem-viver. Inteligência aplicada deve ser cultivada enquanto um mecanismo em expansão para refletir e propor soluções renovadas. Entender quem se é no jogo, o que se quer, e quais as forças envolvidas. Lutar, enxergar as condições postas e saber lidar com elas, este é o desafio.

A falta de proteção social é um desafio do tempo presente. Compreender e enfrentar são palavras de ordem, pois a uberização responde ao desemprego, ainda que de modo imperfeito, propicia alguma percepção financeira a um exército de trabalhadores sem emprego formal, ou que fazem um “bico” para complementar a renda.

Assim, tudo que é humano se corrompe, o mundo e os desafios deste se constroem e reconstroem a todo tempo. Todos os seres vivos estão de passagem pela terra. Tudo é transitoriedade e impermanência.

Ter um carro por aplicativo disponível para sua viagem mediante um simples clique é interessante e útil, mas é preciso entender que todos necessitam de vida digna, de tempo de desconexão, de diversão, de lazer.

Infelizmente, um dado real é que ainda que imperfeito, este serviço propicia mobilidade às pessoas pelas cidades, pois várias localidades contam com transporte público capenga e deficitário.

Carecem os motoristas de aplicativo de receber um valor razoável, digno, enquanto contraprestação ao trabalho vertido. Solidariedade, humanidade, se colocar no lugar do outro, é disto que necessitam todos. Dignidade não é palavrório bonito e pomposo, é um valor da pessoa humana que tem direito a uma existência adequada e honrada.

Em suma, o processo de uberização dos transportes é dilemático e desafia soluções complexas. Invariavelmente, as plataformas digitais denotam a ascensão de um novo modo de se locomover e um dos principiais desafios é que se o trabalho é flexível de um lado, de outro, é precário.

Assevera-se que os trabalhos exercidos por intermédio das plataformas digitais são disruptivos, pois se estabelece uma ruptura brusca do status quo. Há uma quebra de paradigmas, um momento não linear, de dessintonia com o tempo e espaço. Cria-se assim, um modo de operacionalização das relações de trabalho mais desafiador e complexo.

O discurso da flexibilização trabalhista se diz com o propósito de reativar o crescimento econômico, aumentar produtividade e gerar postos de trabalho, mas de fato o que acontece na experiência prática é bem diverso do enunciado, uma efetiva falácia, pois de fato, precariza-se e desvaloriza-se o trabalho vertido pelo esforço do trabalhador.

Não cabe idealizar o futuro, a luta com fins de mudança só pode ser feita coletivamente. O estranhamento é próprio do filósofo que não se conforma com um mundo de distopia. Portanto, cabe o desafio de criar uma moldura trabalhista protetiva e inclusiva, com normas e o estabelecimento de direitos aptos a abarcar mais tipos de labores. Enfim, entender que o Estado e suas leis evitam a barbárie entre os homens, quando inibe a pauperização excessiva de alguns em face do enriquecimento sem precedentes de outros.

*Doutora, Mestra e Especialista pela UFMG. Atualmente, realiza Estudos Pós-Doutorais pela também UFMG, com financiamento público da FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais). Professora convidada no PPGD-UFMG (Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais). Pesquisadora com ênfase nos estudos sobre o Direito do Trabalho, Filosofia do Direito e Linguagem.

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