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Mitos e política no Brasil

Mitos e política no Brasil

O gaúcho Getúlio Dornelles Vargas, responsável pela mais cruenta ditadura já vivida no Brasil, propôs e logrou entrar para a história do Brasil. A mitologia varguista seria disputada

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20-06-2024 às 08h:42

Hugo Rezende Henriques*

Toda sociedade precisa e tem, pois cria, seus mitos genealógicos. São nossas verdades e vontades coletivas, depuradas ao longo do tempo, mistificadas, mitificadas, reordenadas e recontadas, que formam o imaginário coletivo de um grupo. Na contemporaneidade, a Nação se impôs como modelo, ainda que duramente criticado e aparentemente em permanente crise, e é de se esperar, portanto, que alguns desses mitos se desenvolvam como verdadeiros mitos nacionais.

Não pretendo tomar a Carl Jung o criativo rol de arquétipos do imaginário coletivo, mas não é preciso ir muito a fundo para saber que toda cultura tem seus mitos políticos – o Napoleão dos franceses, Abraham Lincoln para os estadunidenses, Pedro, o Grande, dos russos, ... –, e não seria diferente com o Brasil. Em nossa curta história independente, que recém completou parcos duzentos anos, emergem curiosamente duas figuras políticas a governar o imaginário mítico político brasileiro. A primeira, sem dúvidas, a do grande imperador dos trópicos, Dom Pedro II, se estabeleceu firmemente desde sua ascensão ao Trono, em 1840, e foi cuidadosamente construída e cultivada pelo Império, perdurando para o povo e para os intelectuais e políticos brasileiros, mesmo após o golpe republicano, como exemplo de Chefe de Estado íntegro e altivo.

Muito fez e pouco conseguiu a nascente República de latifundiários para obnubilar a figura de Sua Majestade no imaginário brasileiro. O legado petrino seguiria vigente como grande mito político nacional ainda por mais de meio século após sua deposição. Nenhum presidente da dita República Velha teria qualquer mínimo sucesso em disputar a posição. Só em meados do século XX, uma figura de baixa estatura, mas grande impacto, lhe tomaria a posição. O gaúcho Getúlio Dornelles Vargas, responsável pela mais cruenta ditadura já vivida no Brasil, propôs e logrou entrar para a história do Brasil. A mitologia varguista seria disputada por movimentos da direita e da esquerda nacional, e pairaria como a grande figura brasileira do século XX, a dividir opiniões e a gerar reações (traço típico do grande mito político).

O legado varguista se faz ver pelo Brasil atual, na política personalista, na ilusão presidencialista do governante redentor (o próximo inevitavelmente nos salvará! Cremos...), no sindicalismo de Estado e na Consolidação das Leis Trabalhistas (estes últimos recentemente atingidos pela sanha neoliberal – a vermos os resultados). Desde sua morte, em 1954, Vargas inegavelmente paira sobre o imaginário político nacional como fantasma e como mito, a guiar as disputas e especialmente o modus operandi do Estado Brasileiro.

Duas figuras polares, que sendo odiadas e combatidas, ou amadas e protegidas, conquistaram sua posição no panteão da mitologia política pátria, um a reger o primeiro século de história brasileira independente, o segundo a reger o nosso segundo século. Mas o mito varguista vem se esgotando, a busca do grande pai – ou mãe – redentor a resolver como por mágica os significativos problemas do cenário brasileiro se esvai ante os mais de trinta e cinco anos de sucessivos governos neoliberais a destroçarem qualquer instituição estatal sobre a qual ponham os olhos, com especial apreço pelo dilaceramento da Constituição de 1988.

Embora tenhamos quase todos uma sensação bastante distinta, a verdade é que já caminhamos para o fechamento do primeiro quartel do século XXI, e as figuras políticas que poderiam se candidatar a novo mito político nacional parecem fenecer. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguramente se quis, e talvez ainda se veja, como esta figura, e talvez efetivamente tenha logrado algum êxito em construir para e sobre si uma persona condigna deste espaço em seus primeiros episódios como protagonista da grande política nacional. Lula poderia talvez ter se sagrado como um novo Vargas, figura popular, com acenos à direita e à esquerda, disputado por uns, rechaçado por outros. Seu legado dúbio a resplandecer perante os desastrosos sucessores que ocuparam a cadeira de Chefe de Estado desde então – convenhamos, a concorrência é patética.

O atual governo, entretanto, parece transfigurar o mito em tragédia, à medida em que o Pai das Universidades (como recentemente um ministro de seu governo o caracterizou – a acurácia do epíteto resplandece à luz do mito-realidade do pai que abandona, como se faz sentir e noticiar nos movimentos grevistas de técnicos, docentes e discentes universitários Brasil afora) não é mais capaz de restabelecer o alinhavo político que logrou estabilizar em seus dois primeiros mandatos. Não poderia ser diferente. Passados mais de vinte anos, a casta financista do país percebeu que pode ser mais bem atendida por incompetentes dóceis e servis, ao passo que a intelectualidade pátria já teve tempo de compreender os danos dos acordos espúrios feitos outrora (a dimensão e as consequências do PROUNI e do FIES perante os avanços tímidos – ainda que importantes – conquistados pelo REUNI, ambos aliás gestados pela cartola do mago Fernando Haddad, atual Posto Exxon-Mobil do governo, são exemplos eloquentes).

Vencido por si mesmo, no melhor estilo grego, isto é, pela húbris do herói trágico, Lula distancia-se do panteão, e abre espaço para a emergência de um novo mito político para o século XXI brasileiro. De fato, segundo nossa tradição histórica, mais provável seria que este emergisse entre a terceira e a quarta década do século, e a aridez do cenário político atual parece confirmar o vaticínio. Apesar do esforço neoliberal em aprofundar (dirão, concluir) a modernidade, e seu franco projeto de desencantamento de tudo, que inegavelmente impacta o imaginário coletivo de que aqui nos ocupamos, não parece haver dúvidas de que o espaço para esse mito ainda existe. Talvez, aliás, a personagem já ronde a grande política nacional sob o belo céu e doloroso sol brasilienses, insuspeita ante o palavrório vazio do embate entre moralismos que hoje ocupa a cena e os noticiários por todo o território nacional.

Me arrisco, entretanto, a um temerário exercício de futurologia. A tomarmos em conta o esgotamento mundial do receituário neoliberal – um esgotamento, aliás, que o Brasil parece se esforçar em ignorar, talvez para ser novamente o último país do mundo a avançar (muito ao gosto de nossa suposta “elite” do atraso) –, e mirando a retomada de uma agenda de desenvolvimento político, social, cultural, capitaneados pelos Estados que hoje fazem a linha de frente do combate ao delírio privatista, é de supor que o novo mito político brasileiro deverá (e seguramente poderia) emergir como o governante capaz de ler o novo tempo, o tempo do século XXI, e carrear o Brasil até lá, expurgando os produtos mais danosos da aventura neoliberal, e quem sabe guardando aquilo que de interessante (e há elementos tais) que a autoproclamada ortodoxia econômica propôs. Seguramente, ouso supor com firmeza, o galopante abismo entre os multibilionários e a massa da população não poderá ser tolerável. Talvez seja também chegada a hora de romper a tradição de mitos personalistas por grandes mitos institucionais (como o Parlamento dos ingleses, a Suprema Corte dos estadunidenses, a Assembleia dos franceses) mas isso é assunto para outro dia.

Em tempo, agradeço ao Diário de Minas pelo espaço garantido a este humilde professor, que se engalana ante a possibilidade de escrever ao mais antigo jornal em atividade nas Alterosas.

* Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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