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Jurisprudência estável e previsível: utopia ou necessidade?

Jurisprudência estável e previsível: utopia ou necessidade?

A propósito, soa injusto que pretensão recursal possa dormir por anos nos escaninhos dos cartórios e secretarias e, eventualmente, ser resgatado após mudança de entendimento

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22-06-2024 às 09h:00

Rogério Reis Devisate*

Periodicamente assistimos a inesperadas mudanças na jurisprudência. É verdade que as leis mudam conforme surgem novos anseios na sociedade. Contudo, sem mudanças na legislação, não soa natural que haja radicais mudanças nos entendimentos jurisprudenciais. Isso corresponderia à mudança do pensamento do aplicador da lei ao caso concreto e não dos representantes do povo, no Congresso Nacional.

Noutras palavras, ao se ajuizar ação ou se interpor recurso, a parte alvitra provocar o sistema de justiça com base no Direito Positivo e na interpretação (então) contemporânea. Assim, em princípio, soaria justo ou injusto vir a ser surpreendida com mudança no entendimento do julgador?

Convém registrar que o legislador brasileiro, no ano de 2010, modificou a legislação e nos legou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, sendo esta uma norma orientadora da aplicação de todas as demais leis do Brasil, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito-Federal e dos Municípios.

Mais: aquela nova norma introduziu a necessidade de se criar uma “regra de transição” para a revisão em matérias relativas a ato, contrato, ajustes, processos ou normas administrativas, expressamente vedando que, com base em mudança posterior, sejam afetadas situações anteriores.

Noutras palavras: embora se trate de regra específica para questões administrativas e, portanto, do Direito Público, é uma diretriz inovadora.

Mais do que isso: é até razoável se pensar que o legislador buscou obrar com especialidade, mas, ao incluir esse comando legal sob a normatização genérica da Lei nº 13.655/2.018, que cuida de disposições sobre “segurança jurídica e eficiência”, prestigiou a generalidade da jurisprudência dominante e o princípio da “não-surpresa”.

Isso nos faz indagar o motivo pelo qual essa linha principiológica seria excludente dos demais ramos do Direito, se “segurança jurídica e eficiência” são necessidades comuns ao Sistema Jurídico e às partes nos processos.

A indagação possibilita o descortinar de diretrizes mais amplas, de sorte a permitir a sua abrangência para outras circunstâncias e instâncias processuais e sob outros ramos da ciência jurídica, partindo-se, inclusive, da própria diretriz genérica da citada norma.

Talvez seja questão de tempo e de pretensões que construam essa linha de argumentação, adiante ensejando resposta positiva das Cortes de Justiça.

Fica, assim, pela novel diretriz, decorrente da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (já que é lei voltada à aplicação de outras leis) repudiada a tendência de, simplesmente, se modificar o status quo com interpretações que inovem e modifiquem o contexto.

Ainda com referência à mencionada “regra de transição”, devemos enaltecer o seu caráter inovador e de alto potencial e impacto, que, decerto, ainda não revelou todo o seu potencial no cotidiano dos administrados e, sim, também, dos jurisdicionados e das decisões judiciais a respeito.

Ao fixar o “regime de transição”, o comando normativo enaltece o que já dissemos.

A propósito, soa injusto que a pretensão recursal possa dormir por anos nos escaninhos dos cartórios e secretarias e, eventualmente, ser resgatada após mudança de entendimento e, assim, ser atropelada e surpreendida por novel tendência de interpretação jurisprudencial. Com isso, a vontade do povo, manifestada na forma de lei elaborada pelos seus representantes no Parlamento, não se confunde com a opinião do aplicador da lei em caso concreto. Este não representa a vontade popular, devendo decidir com base no Direito posto e com base no sistema consolidado da sua interpretação, na forma dos precedentes e, agora, por essa orientação normativa consubstanciada na “regra de transição”.

Nessa linha, no site do Superior Tribunal de Justiça – STJ, na página Notícias, de 14.6.2020, sob o título “Princípio da não surpresa: a busca por um contraditório efetivo”, lemos: “Conforme a própria Exposição de Motivos do CPC/2015, a função das normas sobre a não surpresa é garantir efetividade às garantias constitucionais, "tornando 'segura' a vida dos jurisdicionados, de modo que estes sejam poupados de 'surpresas', podendo sempre prever, em alto grau, as consequências jurídicas de sua conduta".

Coincide com tudo isso a recente diretriz do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, contida na Recomendação nº 134/2022, em prol do sistema de precedentes da nossa jurisprudência, pela observação das teses fixadas pelos tribunais superiores (art. 4º), criando o dever de expressa menção ao afastamento ou acolhimento das referências jurisprudenciais trazidas pelas partes (art. 10) e prevendo, ainda, que tal conduta possa levar à cassação da decisão (art. 14, Parágrafo 5º).

É muito importante perceber que, diferentemente das disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que antes consideramos, esta recente Recomendação do Conselho Nacional de Justiça não se limita a matérias de natureza administrativa.

A estabilidade da jurisprudência é fator de agilidade, também, pois, com jurisprudência estável, diminui, decerto, as frequentes oscilações na tramitação processual, que ensejam a interposição de tantos recursos, nos tribunais.

A vocação específica acerca das questões administrativas, onde a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro cria, expressamente, o “regime de transição”, permite atribuir nova dimensão ao universo da modulação de efeitos, sendo crível que o espelhamento desse direcionamento possa influenciar decisões outras e sobre as demais matérias pois, ainda que a jurisprudência, tecnicamente, não seja fonte formal do Direito, é crível que funciona como tal, na prática dos tribunais. A sua previsibilidade e estabilidade são necessidades reais e, pelo visto, cada vez menos uma utopia.

* Rogério Reis Devisate é membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Internacional de Direito e Ética e da União Brasileira de Escritores. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU e membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Advogado. Escritor, articulista, autor dos livros Grilagem das Terras e da Soberania,  Grilos e Gafanhotos Grilagem e Poder e Diamantes no Sertão Garimpeiro. Coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais (editada pelo Senado Federal).

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