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Integração ou servilismo?

Integração ou servilismo?

“Quão belo não seria que o istmo do Panamá fosse para nós o que o de Corinto é para os gregos” – foi o que disse Simón Bolívar, um dos grandes heróis da libertação latino-americana

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30-07-2024 às 10h:10

Sarah Santinelly de Miranda*

Em 10 de julho, o projeto de Lei nº 13.415/17, que define as novas diretrizes do ensino médio, foi aprovado pela Câmara dos Deputados com algumas alterações, dentre elas, a supressão do ensino obrigatório da língua espanhola.

Embora a decisão não cause admiração entre aqueles que conhecem o histórico do nosso País de resistir à integração regional, a fala da deputada Adriana Ventura (PN) demonstrou o quão paradoxal é o “neoliberalismo à brasileira”, com suas pregações entusiásticas em defesa da liberdade, mas sempre servil as políticas colonizadoras.

Para a deputada, “não tem nenhum sentido — nenhum sentido! — tornar o ensino da língua espanhola obrigatório, a não ser para atender às demandas e lobbies feitos aqui, para dar obrigatoriedade a uma coisa que o mercado não pede". Em complemento, sustentou que estamos inseridos num mercado global, não importando quais são os acordos firmados entre os países do Mercosul.

Importa relembrar a nobre deputada, que, numa República, sua função consiste em promover o interesse público e não do mercado. E que a Constituição, canalizadora desse interesse, é norma imperativa-categórica, a qual devemos observância independentemente de nossas predileções políticas.

Essa mesma norma, nos reserva um papel estratégico para promoção do desenvolvimento nacional e manutenção de um Estado de Direito, nos impondo, não apenas um comprometimento com a ordem nacional, mas também a internacional.

Inobstante isso, a iniciativa dos nossos Constituintes de buscarem a integração econômica, política, social e cultural dos povos da ibero-américa, visando à formação de uma comunidade ibero-americana de nações, que serviu de fundamento para a proposta de inclusão da língua espanhola na grade curricular do ensino médio, decorreu de uma ordem econômica-política que visava o fortalecimento da economia em período de pós guerras, ou seja, da pressão do mercado global, e não ideológica, como pensam alguns críticos do Bolivarianismo.

Os fundamentos para os Constituintes buscarem a integração ibero-americana estão manifestamente expressas nos acordos firmados na comissão de sistematização e nos discursos proferidos pelos ilustres deputados Marcondes Gadelha, José Carlos Vasconcelos, Nelson Carneiro e José Fogaça, na Assembleia do dia 29 de janeiro de 1988. Quando foi aprovado o conteúdo programático da nossa Constituição, vários países já haviam iniciado o processo de integração.

A Europa já tinha criado três comunidades, sob influência do discurso de Schumann, que propunha uma solidariedade de facto, com a instituição de uma alta autoridade para assegurar a manutenção das indústrias e desenvolvimento da exportação, para crescimento econômico e redução dos conflitos regionais e interferências da política externa, quais sejam, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço - CECA, a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom), as quais se fundiram em 1992, em uma única estrutura, tornando-se a União Europeia.

Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan, já haviam se unido em um mercado comum, formando o bloco econômico Tigres Asiáticos.

Os Estados Unidos haviam firmado um tratado com os países do Sudeste Asiático - SEATO, e Irã, Iraque, Paquistão, Turquia, Reino Unido, o pacto de Bagdá, visando conter o avanço do comunismo em diferentes partes do mundo.

Nosso Constituinte, via a integração como um imperativo histórico-político. O isolamento, significaria o enfraquecimento dos países da América do Sul, pela desvantagem no esquema de coexistência internacional e, consequentemente, completa subserviência às grandes potências. A opção era a integração ou o atraso, por esta razão, não houve qualquer resistência contra a pauta, a qual foi votada por quase unanimidade.

Vê-se, pois, que a posição da deputada, é contradita a sua própria lógica, pois o Mercosul é a corporificação das exigências desse mercado, que ela acredita que devemos atender. A busca da integração ibero-americana é uma resposta às exigências do mercado global, que buscava se proteger em grandes blocos econômicos da instabilidade causada pela segunda guerra e dos efeitos causados pela guerra fria, e posteriormente, da hegemonia dos Estados Unidos.

A obrigatoriedade da língua espanhola buscando a integração com os países do Mercosul, para desenvolvimento regional, portanto, não seria questão de lobby para os países hispano-americanos por corolário lógico, uma vez que, além de ir contra os preceitos constitucionais, seria "incompreensível" que os nossos próprios parlamentares optassem pelo servilismo as grandes potências. O que nos resta saber, é a quem interessa interferir na pauta, que já havia sido discutida e aprovada.

Nem é necessário grande esforço para responder tal questão. Dois dias após a deputada sugerir que a proposta de inclusão decorreu de um lobby, a CNN divulgou que representantes da embaixada da França atuaram no Congresso Nacional para derrubar a decisão, com o apoio da Alemanha e Itália, sob a justificativa de que a obrigatoriedade traria "consequências tremendas" para outros idiomas.

Quais as consequências da nossa integração, senão o prejuízo das tentativas de colonização? O próprio fundamento para que esses países tenham iniciado o processo de cooperação deixa evidente que a tentativa de divisão e enfraquecimento da nossa política interna, é a dominação, clássica estratégia imperialista.

Os mesmos países que se uniram para se protegerem das influências da política externa, especialmente, dos Estados Unidos, tentam nos convencer, por meio de inimigos internos, de que a integração vai contra o mercado global.

Como bem elucidou José Luiz Borges Horta, ao tratar da diplomacia linguística como guerra cultural, a língua é um instrumento poderoso de compreensão dos valores de uma cultura e, portanto, é o meio principal através do qual uma cultura pode se disseminar em seus eixos ideológicos e valorativos centrais. A habilidade de compreender e usar uma língua estrangeira estaria integrada nas múltiplas formas na aplicação da sentença proferida por Clausewitz, segundo a qual, tanto a guerra, quanto a diplomacia são maneiras de alcançar os mesmos objetivos políticos. A diferença está nas "sutilezas", isto é, os métodos utilizados.

Historicamente, a França busca colonizar a América desde 1555, com a criação de colônias. Em 1555, os franceses estabeleceram uma colônia chamada França Antártica na Baía de Guanabara, onde hoje está a cidade do Rio de Janeiro. Estabeleceu a colônia da Guiana Francesa em 1604.

Na América do Norte, começou com a fundação de Quebec por Samuel de Champlain em 1608, expandindo-se ao longo dos Grandes Lagos, do Vale do Rio São Lourenço e do Vale do Rio Mississippi, incluindo partes dos atuais Estados Unidos. Em 1612, os franceses tentaram estabelecer uma colônia chamada França Equinocial na região de São Luís, no Maranhão, e colônias nas ilhas de Guadalupe e Martinica em 1635, colônia de São Domingos na parte ocidental da ilha de Hispaniola em 1659. A colônia da Louisiana foi estabelecida em 1699, com áreas que abrangiam desde o Golfo do México até o atual estado de Minnesota.

Embora algumas dessas colônias tenham sido perdidas para outras potências coloniais ou tenham se tornado independentes, outras ainda permanecem sob controle francês, como os territórios ultramarinos franceses nas Américas, incluindo Guadalupe, Martinica, São Bartolomeu, São Martinho e Guiana.

Atualmente, a França busca fortalecer os vínculos nos campos artístico, cultural, econômico e político, ao se manter como Observador Associado da Conferência Ibero-Americana; e tem defendido, abertamente, que os países ibero-americanos, ou seja, os países da América que foram colonizados por nações da Península Ibérica, especificamente Espanha e Portugal, devem constituir uma aliança para a transição energética.

Eis o interesse do país nessa agenda e na razão pela qual busca impedir a integração da Ibero América, manter o domínio e controle sobre a região, para usar nossos recursos energéticos. A diferença está na substituição dos métodos de controle do colonialismo clássico, por formas sutis e complexas de dominação econômica, política e cultural. Nesse caso, o enfraquecimento de nossas relações internacionais com os países ibero-americanos, por meio de interferências em políticas internas que visam integrar a cultura, pela língua.

Diante da evidente tentativa de dominação, nos resta questionar se a parlamentar possui, de fato, dificuldade de compreender o óbvio, ante o paradoxo de sua defesa e atuação, ou se a sua busca na verdade é a defesa dos interesses das grandes potências coloniais.

Caso a primeira premissa se confirme, digo à deputada, que o que não faz o menor sentido - o menor sentido, é crer na possibilidade de alcançarmos a liberdade econômica, sem antes obtermos liberdade política, cultural e social, especialmente nesse contexto global de cooperação.

Enfim, “quando sonhamos sozinhos, é só um sonho, mas quando sonhamos juntos, é o começo de uma nova realidade.”

A solidariedade é o caminho para essa conquista.

*Sarah Santinelly é bacharel em Direito (PUC) e membro do grupo de Estudos Estratégicos Raul Soares. É graduanda em Ciências do Estado (UFMG) e se especializa em finanças públicas (ECCPPA). É advogada de direito público e analista jurídico-administrativo (TCE).

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  3 comentários

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"A América para os (norte)americanos"."Indústrias aqui, fazendas lá".Isso diz bastante.

Parabens. Muito bom texto. Sucesso.

Uma alegria ver um trabalho dessa envergadura por uma colega jovem e capacitada. Soube alinhavar com maestria tema sempre atual sobre a integração dos países em blocos, tendo como pano de fundo a inclusão curricular da língua espanhola no nosso sistema de ensino. Parabéns, Sarah!

 

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