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Fumaça na água, fogo no céu

Fumaça na água, fogo no céu

Podemos discordar das causas, mas é inegável que há aumento das temperaturas e instabilidade dos ciclos de chuva, umidade e calor, em várias regiões do mundo.

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30-08-2024 às 09h:25

Rogério Reis Devisate*

Os rios voadores se transformaram em turbilhão de fumaça e cobriu grande parte do país.

Para quem não sabe, chamamos de rios voadores a imensa quantidade de vapor d`água que desce da região caribenha e ganha corpo pelo produto da evapotranspiração da floresta amazônica, seguindo em direção ao Sul do País, onde se condensa e causa as grandes chuvas.

É a natureza com os seus caminhos e mistérios, mobilizando imensa quantidade de energia e seguindo os seus ciclos naturais. Contudo, a marcha civilizatória humana interferiu nesse processo.

Prossegue a imensa quantidade de gás carbônico despejada na atmosfera, notadamente nas últimas décadas, aliada aos processos de desmatamento irregular e às inegáveis mudanças climáticas em curso. Tudo isso gera anomalias nos processos naturais.

Continuamos com os nossos olhos a tudo isso, mas não podemos deixar de sentir as consequências...

Podemos discordar das causas, mas é inegável que há aumento das temperaturas e instabilidade dos ciclos de chuva, umidade e calor, em várias regiões do mundo. 

Ora, pequeno aumento na temperatura das águas oceânicas acarreta imensas consequências nas correntes marítimas, pois estas dependem da troca de calor e da densidade das águas e salinização. O acelerado aumento das temperaturas interfere na vida marinha, no fitoplâncton que cresce desordenadamente em algumas regiões, nos corais que já falecem em outras, etc. Tudo isso faz parte de longa e complexa cadeia de vida, que chega às espécies comercializadas e por nós consumidas.

É importante compreender como as correntes marítimas funcionam e como é grave a questão do pequeno aumento das temperaturas, no geral. As grandes correntes operam em todo o globo e funcionam pela diferença de pressão e salinização. Em resumo, as águas pesadas e salgadas descem e empurram as águas profundas e mais leves – com menos sal. As águas frias e salobras dos polos da Terra seguem em direção à linha do Equador, enquanto as águas quentes e menos salobras dessa região descem e alimentam o mesmo contínuo processo. 

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Por outro lado, o recente derretimento das calotas polares joga mais água doce nos oceanos e o faz em quantidades imensas, a ponto de interferir nessa relação.

Pequenas mudanças nessas correntes interferem nos microclimas das regiões por onde passam e nos ventos, desdobrando os seus efeitos. Em parte, por isso temos visto alterações aqui ou acolá, com mais ou menos chuvas, mais ou menos calor, mais ou menos umidade.

Tudo está interligado. Os eventos aparentemente isolados em verdade se relacionam e coincidem com outros, produzindo efeitos que já sentimos, em especial em algumas regiões.

É por isso que as correntes de vento que conduzem os chamados rios voadores têm servido para deslocar a imensa fumaça por vários estados do País. 

Essa fumaça é tão grande e intensa que transforma dias em noite, sufoca a respiração, aquece o ar e diminui a quantidade de umidade disponível. É esse turbilhão tóxico que nos afeta.

Nem toda a Região Amazônica é formada por florestas tropicais, pois muito do seu território possui vegetação de Cerrado. Como exemplo, lembramos que Roraima possui cerca de 17% de vegetação típica de Cerrado. 

É importante lembrar que a legislação permite que haja o desmatamento regular de 80% dos cerrados, sendo obrigatória a preservação dos 20% remanescentes. Aliás, nem todos os desmatamentos são ilegais.

Além disso, é fato notório que os Cerrados tendem a queimar nos períodos de seca, pelos efeitos dos anuais ciclos da natureza, nos períodos de estiagem. Parte visível e confirmatória disso é a forma dos troncos das árvores das regiões de Cerrado, tipicamente tortas e cobertas por dura casca protetora. O mesmo fenômeno dos grandes incêndios que atinge os nossos cerrados ocorre, também, nas savanas africanas. Queima anualmente e renasce, como Fênix, das cinzas, com a chegada das primeiras chuvas.

Não obstante, a imprensa tem noticiado incêndios ilegais. Esses devem ser tratados na forma da lei e não são úteis a ninguém. Contudo, parecem ser fatos isolados (fala-se que 7 pessoas foram detidas por tal motivo) e que não respondem pelo que se vê em todo o País, que apresenta vários focos de incêndio de grandes proporções, a ponto de haver decisão do Ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal – STF, concedendo o prazo de 15 dias para que órgãos do Governo Federal otimizem a atuação no combate aos incêndios.

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As imagens que a imprensa vem divulgando são impactantes. Parafraseando música da banda Deep Purple, poderíamos dizer que vemos fumaça na água e fogo no céu. Em verdade, a fumaça está por todo lugar nos enquadramentos das câmeras, enquanto as chamas chegam a alturas imensas. Numa das imagens, feita no interior de São Paulo, caminhão manobra na estrada enquanto, ao fundo, as labaredas ultrapassam muitas vezes a sua altura, em cenário tão dantesco quanto naqueles filmes sobre o fim do mundo, com o fogo brotando das profundezas da Terra para engolir a vida.

Importa lembrar que as queimadas também atingem a Califórnia e outros locais, com frequência. Em Portugal, há poucos anos, pessoas morreram queimadas nos seus carros, quando os pneus derreteram pelo calor do asfalto, em decorrência dos incêndios.

O Planeta está em mudanças. Quem sabe quisera o Planeta se mudar para longe dos humanos, mas como isso não é possível, talvez haja para expurgar esses mamíferos que parecem mais prantear as ameaças e danos aos seus patrimônios do que os danos às vidas e saúde dos seus semelhantes e das demais formas de vida. 

Sem ações está a humanidade, não tendo outro Planeta para se mudar e não querendo modificar nada nos seus hábitos predatórios, na sua vida consumista e na gestão egoísta e narcisista dos seus dias. Hoje, vivemos de tal modo que talvez deixemos o fogo queimar um pouco mais qualquer coisa, se isso nos proporcionar boas selfies e fotos para postar em aplicativos de celular.

Nos perdemos da nossa humanidade...

Essa futilidade e superficialidade de ações estão nos conduzindo ao fundo do poço, que vai estar seco de água potável, se continuarmos a nos preocupar apenas com o dia de hoje e não plantarmos logo as boas sementes para um futuro minimamente parecido com o que ainda conhecemos como vida saudável – ou num Planeta onde haja vida.

*Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal

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