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Eros, Tânatos e a Inteligência Artificial

Eros, Tânatos e a Inteligência Artificial

Quando falamos de tecnologia, portanto, temos de nos ver primeiro com a tensão entre essas duas pulsões, a erótica (de vida nova, renovação) e a tanática (de vida antiga, complacência).

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24-07-2024 às 09h:30

Hugo Rezende Henriques*

Curioso tempo em que vivemos, onde novamente somos tomados de medo da tecnologia. Hoje representada pelas Inteligências Artificiais, já nos vimos abismados com a técnica diversas outras vezes. Não é desconhecida a perseguição aos estudiosos de cadáveres que nos legaram o conhecimento da fisiologia humana que hoje permite que saibamos tratar tantos males que nos afligem, ou o temor e a reverência dos modernos ao se depararem com a técnica de Estado (soberano) que então emergia entre os séculos XII e XIV. Fúteis temores, pois já dizia a letra de Belchior, “o novo sempre vem”. O século XX é um século particularmente povoado de medos e estupefações: nos demos conta de que a tecnologia permitia a realização não apenas das belas utopias humanas, mas também de seus mais mortíferos devaneios.

As primeiras décadas do século XXI pareceram, ao menos a muitos de nós, apresentar-se como um grande marasmo, um eterno repetir do mesmo, onde até mesmo a inovação dava lugar à repetição. Como se o timão das sociedades europeias e americanas (outros lugares parecem ter tido melhor sorte) tivessem sido entregues a engenheiros de produção aficionados em otimizar procedimentos e processos, mas pouco afeitos a alterações substanciais de rota. O campo da tecnologia é tão significativo do argumento quanto o campo político. Ninguém há de negar que a capacidade de processamento de computadores, celulares e outros apetrechos evoluía, permitindo que fizéssemos exatamente as mesmas coisas em menos tempo, com qualidade óptica mais agradável. Nesse sentido, a Inteligência Artificial se apresentou como modificação substancial do estado de coisas, criando um novo espaço de possibilidades que não experienciávamos desde a revolução computacional (e os sonhos/delírios que dela resultariam, como o curioso Neuromancer de William Gibson).

De “revolução” em “revolução” tecnológica, parece sempre necessário refletir sobre o que seja afinal a técnica, como ela se relaciona com o homem, e quais as suas potencialidades de fato. O campo próprio desse debate podemos chamar de Antropologia Filosófica.

Segundo o filósofo castelhano José de Ortega y Gasset, a vida na natureza é uma vida em alteração. O Alter que compõe o termo em questão se refere ao exterior, aquilo que não me é próprio, o “outro”. Um ser na natureza é um ser inteiramente para o exterior, determinado em todas as suas ações por aquilo que lhe é apresentado: fome, sede, cansaço, medo e uma incessante busca por segurança para si (e, eventualmente, para a prole). Em oposição à natureza, o homem se coloca no mundo como um ser capaz de ensimesmar-se, de voltar-se para dentro de si, de se deixar com seus pensamentos, e refletir, sobre si, bem como sobre seu entorno. Assim, seguindo o raciocínio orteguiano, o que é propriamente humano é uma capacidade que não lhe é dada pela natureza, mas pela técnica e pela perpetuação dessas técnicas na cultura, pois a técnica representa precisamente um nível de domínio tal sobre a natureza que permite ao homem ensimesmar-se.

Toda técnica, portanto, é um meio que possibilita a realização de um fim, um telos, e essa finalidade é humana. Se a técnica de usar uma pedra para caçar um animal impossível de ser caçado com as mãos permite ao homem liberar tempo de busca de alimento para ensimesmar-se, as técnicas de comunicação permitiriam transmitir outras tantas técnicas, criando um ambiente de significação comum que conhecemos por “cultura”. Nesse sentido, cultura e natureza são antipodais: a natureza é o espaço onde o ser é obrigado a se voltar ao periculoso exterior, enquanto a cultura é o espaço onde o ser tem a possibilidade de determinar seus próprios objetivos (pessoais ou coletivos), para então persegui-los. No ambiente cultural, então, viemos desenvolvendo técnicas que nos furtam à alteração da natureza: contra a fome, agricultura, pecuária; contra a sede, poços, aquedutos, redes de água encanada e tratada; contra o cansaço e a insegurança ambiente, cabanas, casas, moradias sólidas e enfim, cidades. A cidade é a apoteose da cultura, pois é a ressignificação completa da natureza para fins coletivos, com soluções tecnológicas para que todas as necessidades humanas sejam satisfeitas de maneira otimizada, permitindo, supostamente, tempo para nos ensimesmarmos, para refletir.

Eis então o primeiro grande desafio da cultura e da tecnologia. Possibilitado o espaço de reflexão, descobrimos que nem todos gostávamos, quiçá alguns de nós sequer queria, esse tempo. Ensimesmar-se pode ser assustador, e o vaticínio de Baudelaire paira sobre nós desde o primeiro poema de “As Flores do Mal”, em seu aviso ao leitor: “C’est l’Ennui!”. “É o tédio!”.  As palavras ressoam ao antagonismo de pulsões humanas que conhecemos bem, uma que é o arauto de toda a mudança (e com a qual Baudelaire conclui seu famoso livro, no poema “A Viagem”: “Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo/Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/ Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!”), a outra um deixar-se estar ao sabor do que já é, deleitando-se no que de idêntico o hoje tem com o ontem.

Quando falamos de tecnologia, portanto, temos de nos ver primeiro com a tensão entre essas duas pulsões, a erótica (de vida nova, renovação) e a tanática (de vida antiga, complacência). O temor diante das novas tecnologias, assim, pode ser compreendido como o receio do novo exibido por uma vida humana satisfeita com seu momento atual, com aquilo que já conquistamos: é um temor de tipo conservador. Sua proposta é a extirpação ou a proibição do novo.

O segundo desafio da técnica diz respeito à sua finalidade. Como já mencionamos, toda técnica tem uma finalidade, mas seria mais acertado afirmar que ela pode ter diversas finalidades — e qual delas ela cumprirá não é mais do nível da técnica, mas do nível da cultura propriamente dita. Assim, diferentes culturas podem dar, às mesmas técnicas, finalidades completamente distintas, por vezes desenvolvendo-as em sentidos que originalmente não foram pensados, ou aplicando a contextos de início insuspeitos, ou inimagináveis. E se uma cultura é suficientemente autoconsciente, essa decisão não se dá apenas no nível da intuição pessoal, mas pode se dar também no nível político – aqui podemos, então, dizer de uma ética da tecnologia. Por meio dela definimos quais defensivos agrícolas toleraremos o uso para nossos alimentos, quais casos terão prioridade em um plantão médico, ou quais condições de labor consideramos insalubres.

Nesse ponto, a técnica tem de se ver com outras duas posições tipicamente humanas, a de aceitação do novo tal qual ele se mostra, e a de reação a ele. A reação é substancialmente distinta da conservação, esta que, por temor, deseja que o novo não advenha. A reação se encanta pelo novo, mas teme pela finalidade com a qual se apresenta de imediato. A posição reacionária é a posição que coloca o novo em questão do ponto de vista ético e político. Afinal, saber qual a finalidade de uma tecnologia nova impacta diretamente na vida humana. Se dissemos que a tecnologia possibilitou o ensimesmar-se que faz do homem verdadeiramente humano, é de se questionar a quem, ou a que grupos, ou se a toda a coletividade, aproveita certa tecnologia.

Olhando assim para o advento da Inteligência Artificial, nos colocamos a questão da finalidade das novas tecnologias, e a desconfiança de que beneficiem muito mais diretamente a uns que a outros faz com que muitos de nós nos movamos para refletir sobre quais as finalidades queremos ver cumpridas pela potência dessa nova ferramenta. Servirá para construirmos sociedades onde mais pessoas possam dispor de tempo para si, para o ensimesmar-se, a reflexão e a apreciação da vida, ou apenas para reduzir custos de procedimentos e pessoal, lançando outra leva de homens a atividades laborais francamente inúteis?

Afinal de contas, talvez as recentes revoluções tecnológicas (computação, Inteligência Artificial, robótica) em breve nos coloquem face a face com nossa própria sociedade e a pergunta essencial sobre seus fundamentos mesmos. Em 1996 veio a lume o espetacular “O Horror Econômico”, de Viviane Forrester, chamando atenção para a possível e provável inatualidade do valor “trabalho” em um mundo transmutado pelas tecnologias, mas comento sobre este libelo em outra oportunidade.

*Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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