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Dom Pedro II e “A Divina Comédia”

Dom Pedro II e “A Divina Comédia”

A Biblioteca do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG), possui um exemplar de “A Divina Comédia” com brasão imperial na capa e dedicatória à imperatriz Teresa Cristina.

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09-08-2024 às 09h:36

Sérgio Augusto Vicente*

No primeiro semestre de 2024, o Museu Mariano Procópio contemplou, em seu mais novo catálogo de livros pertencentes à família imperial brasileira, um exemplar da obra “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, editada e impressa pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro, em 1888. Trata-se de uma das primeiras traduções deste clássico da literatura mundial para a língua portuguesa, por Francisco Bonifácio de Abreu, mais conhecido como Barão da Villa da Barra.

Nascido em 1819, este se formou pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1845, e se destacou em diferentes ações: 1) exercendo a função de lente de História e Geografia do Liceu Baiano; 2) sendo médico da Imperial Câmara (1859); 3) integrando a comissão da viagem do governo imperial à Europa em 1854/1855, quando estudou química orgânica com o químico francês Charles-Adolphe Wurtz; 4) acompanhando, como médico, o imperador Pedro II e sua comitiva, em viagem pelo norte do Brasil, em 1859; 5) assumindo o posto de inspetor de saúde do porto do Rio de Janeiro (1860); 6) chefiando os serviços médicos durante a Guerra do Paraguai; 7) exercendo o mandato de deputado geral pela província da Bahia; 8) presidindo as províncias do Pará (1872) e de Minas Gerais (1875-1876); 9) atuando como sócio do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia; dentre outras funções.

Falecendo em 1887, Barão da Villa da Barra teve a sua tradução de “A Divina Comédia” publicada postumamente. Seu sobrinho, José Carlos Mariani, em homenagem prestada à memória do tio, reuniu os manuscritos, organizou a edição e redigiu o prefácio. Funcionário público e médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, Mariani era também oficial da Ordem da Rosa e cavaleiro da Ordem de Cristo. Dentre as suas produções intelectuais, destacam-se a tradução da obra “Método de Ahn para aprender facilmente a língua alemã” e “Qual a influência da luz sobre o estado de doença e ação dos medicamentos?”

Ao redigir o prefácio de “A Divina Comédia”, Mariani enalteceu as memórias do tradutor: “Publicando os manuscritos que deixou o Barão da Villa da Barra, meu prateado tio, creio prestar uma homenagem à memória desse ilustre brasileiro, e ao mesmo tempo uma homenagem às letras pátrias”. Afirmou, ainda, que a tradução foi publicada tal como o tio a deixou.

Vale ressaltar que D. Pedro II também deixou entre os seus trabalhos intelectuais a tradução dos cantos V e XXXIII do “Inferno” de “A Divina Comédia”, fato que vem despertando em alguns pesquisadores o interesse de cotejá-la com outras versões, a exemplo do que fez Romeu Porto Daros em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Santa Catarina.

Manifestando interesse pela língua italiana antes mesmo de assumir o trono brasileiro, D. Pedro II recebeu de presente de casamento com Teresa Cristina o livro “Ramalhete poético do parnaso brasileiro”, de 1843, no qual Luiz Vicente De Simoni reuniu diversas traduções de excertos de autores italianos para o português, inclusive trechos de “A Divina Comédia”. Ainda que não seja integral, essa tradução que De Simoni fez de Dante pode ser considerada a primeira realizada no Brasil.

Segundo Daros, mesmo não sabendo a data exata em que D. Pedro II traduziu os trechos do clássico italiano, é razoável considerar que esta tradução tenha sido realizada concomitante ou após as traduções de De Simoni e do Barão da Villa da Barra. Mas, De Simoni parece ter sido o que mais entusiasmou D. Pedro II a se aproximar de “A Divina Comédia”. Não parece fortuito, portanto, que o imperador brasileiro, além de escolher os mesmos trechos da obra para traduzir, tenha seguido uma concepção tradutória muito similar à de De Simoni, o qual defendia que a tradução deveria manter-se fiel ao original no efeito causado nos leitores. Assim sendo, o imperador dedicou-se a manter o encadeamento, as rimas e a sonoridade dos versos originais ao vertê-los para o português, conformando um estilo tradutório muito diverso ao adotado pelo Barão da Villa da Barra, que optou pelos versos soltos.

Apesar de também estabelecerem próxima relação, D. Pedro II e Barão da Villa da Barra não trocaram influências no processo tradutório do clássico de Dante. Não obstante, José Carlos Mariani fez chegar às mãos de Teresa Cristina um exemplar da tradução de seu tio com a seguinte dedicatória manuscrita: “À S. M. a Imperatriz com o devido acatamento oferece o seu humilíssimo servo e súdito Dr. José Carlos Mariani”. Exemplar dotado de encadernação de luxo, ornamentações e brasão imperial gravados em dourado. O mesmo exemplar que veio pertencer à Biblioteca do Museu Mariano Procópio, integrando os objetos que Alfredo Ferreira Lage (1865-1944) colecionou com o intuito de perpetuar as memórias da monarquia brasileira.

Em 28 de dezembro de 1889, pouco tempo após o recebimento deste exemplar, Teresa Cristina falece na Europa, onde se encontrava exilada, juntamente ao marido e os demais imperiais, em decorrência do golpe civil-militar de 15 de novembro de 1889, que pôs fim ao regime monárquico brasileiro. Segundo a narrativa de Afonso Celso, citada por Pedro Calmon, D. Pedro II teria relido e comentado trechos de “A Divina Comédia” durante o funeral da imperatriz, demonstrando sua profunda afeição pela obra de Dante.

Devido à sua familiaridade com o italiano, é mais provável que, nesse momento do funeral, o ex-imperador do Brasil lesse uma edição impressa na língua de Dante, e não a tradução do Barão da Villa da Barra ou os trechos de De Simoni. Independentemente disso, porém, é curioso pensar no significado dessa obra e de seu autor para D. Pedro II, que talvez pudesse estabelecer algumas analogias entre a sua vida e a de Dante Alighieri. Analogia que, por sinal, o autor do já mencionado “Ramalhete poético do parnaso brasileiro” já fizera em 1843.

Nesse momento trágico de sua vida, porém, marcado pelo sofrimento no exílio, talvez viesse à sua mente a experiência também vivida por Dante em uma época e sociedade tão diferentes das do século XIX. Ao invés das virtudes dantescas outrora salientadas por De Simoni em seu caráter de jovem monarca do passado, talvez pesasse na imaginação do agora “velho monarca destronado” a morte de Dante Alighieri no exílio, em Ravena, em 1321. Fato que, sem nenhum exagero, podia perfeitamente fazê-lo pensar na igual impossibilidade de nunca mais rever sua terra natal.

*Sérgio Augusto Vicente é professor de História e historiador. Graduado, Mestre e Doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora

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