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Crônicas Judiciarescas

Crônicas Judiciarescas

Sentados em cadeiras padrão-repartição seguimos nos entreolhando enquanto serventuários e magistrada se esmeravam em organizar o necessário para o início do trabalho.

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02-08-2024 às 09h:19

Hugo Rezende Henriques*

Uma tarde de junho de 2024, com todas as características de uma cotidianidade atroz, me trespassava a vida de professor do magistério superior em greve quando soa o interfone de meu apartamento, e escuto o porteiro do prédio me alertar, algo preocupado e algo zombeteiro, que uma Oficial de Justiça estava a me esperar no saguão. Nenhum cidadão brasileiro aguarda uma surpresa dessas e, seguramente, as mais mirabolantes teorias sobre de quem ou o porquê poderia eu estar sofrendo um processo e sendo intimado me atravessaram a mente. Desci como se desce ao umbral, à espera de sofrer o vaticínio de quem seguramente me queria mal – ninguém imagina ser intimado por motivos agradáveis.

Para minha surpresa, a Oficial, muito simpática, abriu um sorriso divertido e levemente sórdido ao me ver sair do elevador, e foi logo se explicando. Tratava-se de uma intimação para comparecer ao Fórum de Uberlândia em algum momento do mês vindouro, de julho, para a pauta de um mutirão de julgamentos por Júri Popular. Eu comporia o grupo de cidadãos idôneos que a Constituição brasileira determina que devam julgar os casos de crimes dolosos contra a vida (Art. 5º, XXXVIII, “d”). A intimação tratava de caso a ser julgado em uma segunda-feira, e em um complemento de três linhas explicava que se estenderia ao restante da semana – depois eu soube que, por economia (de impressões, suponho), a intimação de um processo era aproveitada aos demais. O ofício ainda alertava que o não comparecimento acarretaria multa a critério do juiz; jamais seria o caso, pois os atos da vida cívica sempre me encantaram, desde os mais nobres, como o voto, até os mais simples.

Sou, aliás, sistemático defensor de que o Estado de Direito tem por características fundamentais, precisamente, seus compromissos com a democracia (enquanto método de formação da vontade nacional a partir do embate ideológico no Parlamento) e com a cidadania (enquanto finalidade mesma do Estado de Direito, tendo em seus destinatários os nacionais e eventualmente também outros que nossa cultura entenda aproveitarem dos nossos Direitos Fundamentais – a universalidade do SUS é seguramente o melhor exemplo). A cidadania, entretanto, é um compromisso de mão dupla, de direitos e deveres entre cidadãos e Estado, e precisa e deve ser vivenciada a todo o momento, especialmente quando a aproximação entre ambos os “polos” é mais patente.

Cumpri meu papel com esmero e, apesar da minha conhecidíssima ojeriza às manhãs, tecidas pela criação, nisso creio, para que se desenvolva o melhor sono dos justos, lá estava no Fórum às nove horas da manhã, pronto para cumprir o papel a que havia sido intimado. Se iniciava então minha saga de estarrecimento e indignação. A intimação não explicava absolutamente nada sobre o instituto do Tribunal do Júri e, perante um conjunto de cidadãos assustados e em profundo desconhecimento da significação ou do trâmite que ali se processaria, fomos recebidos por serventuários da justiça que tampouco nos disseram algo além de um convite a nos assentarmos.

Não tecerei maiores comentários à estética – pavorosa – das repartições públicas tocadas pela tecnocracia, suas divisórias de “MDF”, seus tons pastéis de creme, suas mesas e cadeiras de plástico e madeirite. É a mesma antiestética que cotidianamente presencio na maior parte das salas e corredores das Universidades do Brasil. Nem discutirei a razoabilidade de um “Mutirão de Júri”, deslocando promotores, defensores e magistrados regiamente compensados por se disponibilizarem a cumprir as tarefas que os magistrados locais aparentemente não têm conseguido realizar em tempo razoável. A título de curiosidade, e em tom de boa fofoca, em Minas Gerais a diária dos magistrados (juízes de Direito) hoje varia entre R$800,00 e R$1.200,00, a depender do destino. A título de comparação, os servidores federais, em regra (há exceções, conforme a natureza do cargo), recebem diárias entre R$335,00 e R$425,00, conforme o destino.

Voltemos ao Tribunal do Júri. Este é composto por cidadãos idôneos, selecionados entre listas de que dispõe a Justiça, produzidas por iniciativa dos cidadãos interessados em participar, ou que a ela foi encaminhada por alguma instituição. Não se sabe, portanto, e a princípio, quase nada a respeito dos cidadãos convocados. Ainda assim, ninguém pareceu se preocupar se havíamos nos alimentado, seguramente não foi servido qualquer alimento aos presentes naquele momento inicial (nem mesmo água ou café foi oferecido). Também não se questionou a possibilidade de algum tipo de recomposição aos gastos dos convocados com deslocamento. Ao contrário, o que parecia era que sequer poderíamos utilizar o estacionamento do Fórum (depois soube que poderíamos usar o secundário, de cujo acesso ao Fórum implica em uma longuíssima caminhada que faz dele praticamente um estorvo inutilizável).

Sentados em cadeiras padrão-repartição seguimos nos entreolhando enquanto serventuários e magistrada se esmeravam em organizar o necessário para o início do trabalho. Só então, à boca miúda, em cochichos entre os convocados, fomos nos inteirando, por meio daqueles que já haviam experienciado o instituto, dos pormenores do rito. Seriam sorteados 7 jurados para compor efetivamente o Júri do caso a ser julgado naquele dia; havia dentre os convocados titulares e suplentes; defesa e acusação poderiam rejeitar certo número de jurados sorteados, se assim o quisessem; e assim por diante. Em meio a esta agradável confraternização sussurrada (a presença de um magistrado suscita essa respeitabilidade paternal em nós, brasileiros), finalmente a magistrada se pronunciou para dizer que acataria a todos os pedidos de dispensa. Uma possibilidade que, até então, não havia sido explicada a nenhum dos presentes. Uma surpresa talvez baseada na presunção de que todo cidadão conhece o Direito e, portanto, nada ali precisaria ser esclarecido.

O absurdo da situação, verdadeiramente kafkiana, se fez sentir nos olhares estarrecidos de magistrada, defensor e promotora uns aos outros e aos serventuários quando, ao ser sorteada uma mulher visivelmente em período avançado de sua gestação, se exclamou com alguma consternação “poxa, mas ela não requereu dispensa”. Provavelmente ela, como a maioria dos ali presentes, sequer sabia dessa possibilidade, e para as cadeiras destinadas ao júri se encaminhou a mulher, sob murmúrios de indignação levemente aliviada dos não-sorteados. Daí em diante fomos liberados, aqueles não selecionados, pelo dia, e intimados novamente, agora verbalmente (e em reforço à intimação já recebida), a retornar na manhã seguinte, para repetir o procedimento.

Tudo naquela situação ressoava a Joseph K., a personagem de “O processo”. Mas a surrealidade era temperada pelo fato de que ninguém, dentre os convocados, comparecia ali por razão de qualquer processo próprio. Éramos cidadãos brasileiros convocados a contribuir com o esforço e os ditames jurisdicionais pátrios, merecedores de todo o zelo e respeito devido sempre pelo Estado aos seus cidadãos, mormente aqueles que Ele próprio intima a contribuir com a persecução dos mandamentos constitucionais.

Eu repetiria o ritual de acordar em horário avesso aos meus costumes pelos cinco dias daquela semana, mas só a partir da quarta-feira teria a experiência de ser sorteado e chamado a compor o conselho de sentença do Júri. A sorte ainda me faria selecionar nos dois dias seguintes, tendo composto novamente na quinta-feira, e sido dispensado (a pedido meu) pela promotoria. Àquela altura da semana já tínhamos, quase todos, intimidade suficiente para explicar, no meu caso, que meus pais estavam a caminho da cidade para uma visita, e que compor aquele conselho me seria um pouco inoportuno na data. Alguma cortesia e civilidade, afinal, persistem, e por isso sou-lhe grato, Sra. Promotora.

Àquela altura, a de quando fui por primeira vez sorteado, na quarta-feira, confesso que já nutria em meu íntimo a esperança de ser sorteado, para poder compor esse relato da forma mais completa possível. Então soube, finalmente, que prestados o juramento inicial e composto efetivamente o conselho de sentença, estavam enfim disponibilizados aos sete sorteados o café e a água, que antes se encontravam no canto da sala. Também fomos informados, finalmente, da incomunicabilidade do Júri (e foi garantido o tempo para que familiares ou outros contatos fossem alertados do fato). A partir dali, não poderíamos falar sobre o caso nem mesmo entre nós, e todo o essencial (alimentação, idas ao sanitário e, eventualmente, até hospedagem – se o julgamento durasse mais de um dia – seriam fornecidos pelo Judiciário), estaríamos, ainda, sempre acompanhados de serventuários da justiça para garantir a incomunicabilidade dos jurados e auxiliar-nos no necessário.

De fato, aos jurados foi fornecida a alimentação, vez que o julgamento atravessou a manhã, uma suspensão momentânea da sessão pretendeu garantir a todos o tempo para almoçarmos. Curiosamente, a nenhum dos jurados foi questionado sobre preferências alimentares, e nem mesmo restrições, alergias, ou condições médicas que exigissem maior atenção foram perquiridas. Um dos jurados se recusava a se alimentar, e jamais saberemos se por íntima decisão ou por impossibilidade de refestelar-se com aquele alimento específico. O cuidado do Poder Judiciário para com os cidadãos brasileiros ali prestando função pública, pareceu destoar do esperado (para não dizer exigido), senão pela lei, seguramente por mandamentos de urbanidade.

Expressão processualmente mais grave desse descompasso entre expectativa e realidade cidadã, o relatório transmitido aos jurados para que se inteirassem do caso em julgamento é redigido inteiramente em linguagem forense, com menções a artigos de códigos que seguramente transmitirão à maioria dos brasileiros tanta informação quanto hieróglifos egípcios. Não bastasse isso, o documento seguramente é produzido nas melhores praxes forenses, copiando à exatidão, por exemplo, trechos da denúncia: um documento parcial, produzido pelo órgão acusatório à revelia da defesa. Em um dos julgamentos de que participei, o relatório trazia em seu primeiro parágrafo um trecho da denúncia que classificava o fato em julgamento de forma distinta daquela efetivamente recepcionada pelo juízo de instrução. Para todos os efeitos, o relatório trazia, ali, informação objetivamente errônea a respeito do caso em julgamento, em possível prejuízo da defesa e do réu. Algo impensável em sede criminal, onde o princípio do “in dubio pro reo” é mandamento tão antigo quanto essencial nas práticas do Estado de Direito. Mas seguimos.

Não sabendo exatamente o significado ou as prerrogativas do Júri Popular, o rito por vezes tomava um ar algo cômico. A surpresa do magistrado ao ouvir que “sim, eu gostaria de fazer questionamentos à testemunha”, foi seguida de um breve tumulto para definirmos se a questão seria feita diretamente, ou repassada ao magistrado. O bom senso prevaleceu, e as questões, escritas em papel e caneta providenciados às pressas, foram encaminhadas ao magistrado para leitura. A ritualística se aprimora também pelos usos e costumes, e no segundo dia em que fui sorteado de pronto já requeri papel e caneta aos serventuários, que gentilmente o providenciaram a mim e a outros membros do conselho de sentença que o requereram. Uma vez que se estabeleçam bons padrões, percebe-se que a questão não é da índole do pessoal envolvido, em tudo absolutamente solícitos, mas das instituições mesmas, despreparadas para o bom tratamento cidadão. A mudança, aliás, foi notada por um experiente advogado criminalista, que fez questão de salientar, ao final de sua defesa, a satisfação com um Júri participativo e interessado.

Sendo composto por cidadãos de origens e formações distintas (incertas, até o momento em que o Conselho de Sentença é efetivamente sorteado), o cuidado e a máxima informação e precisão dos trâmites garantiriam o tratamento mais cidadão possível aos envolvidos. Ainda assim, trata-se de julgamento por cidadãos não-togados, e, portanto, de se esperar que o recurso ao emocional dos participantes faça parte do jogo de encenações de um Júri popular (ainda que, saliente-se, bem menos teatralizado do que os Júris estadunidenses, reais ou cinematográficos, que nos bombardeiam as mídias). Tudo isso sendo verdade, é estarrecedor o que presenciei em sede de esforço acusatório por honoráveis membros do Ministério Público, que não se furtavam a ignorar quase por completo as peculiaridades do caso em julgamento, para convencer os membros do Júri de que se tratava, de fato, da realização de uma política pública necessária à nossa sociedade. Ora, acompanhem, por gentileza, as razões de minha indignação: se o Poder Judiciário já é, dentre os três poderes constituídos, seguramente o menos capacitado ou legitimado para elaborar e efetivar políticas públicas, um processo penal seguramente é o mais distante possível de um espaço de realização de uma política pública. Se esta tem por característica um esforço geral de realização de Direitos Fundamentais, o processo criminal é o espaço de tentativa de reconstrução de um fato e da intencionalidade de um agente, ambos absolutamente específicos, sem nenhuma generalidade cabível. Ainda que se possa aplaudir o esforço do Ministério Público do Estado de Minas Gerais em contribuir com as políticas públicas e a realização da cidadania em geral e da justiça em particular, o âmbito de um processo penal específico é, sem qualquer sombra de dúvidas, o espaço mais inadequado possível para se pensar em quadros gerais e estatísticas criminológicas. Mormente quando se incensam tais argumentos a uma plateia de civis potencialmente leigos, e quase seguramente pouco capazes de perceber a não tão sutil distância entre um processo específico e um esforço social de combate às iniquidades em geral.

Ao final de uma semana de trabalhos e de agradável exercício da cidadania, ainda que permeada por pequenos percalços, como aqueles que minha memória permite relatar, o afeto brasileiro já se fazia sentir entre todos, as conversas já eram mais íntimas, as praxes já se davam de forma mais serena. A força da cultura brasileira é capaz de vencer muito mais complexos obstáculos. Nem por isso, devemos perder de vista a necessidade de um esforço e do compromisso estatais com a cidadania, base sobre a qual erigimos o Estado de Direito. A cada vez que um cidadão se sente desrespeitado ou injustiçado pelo Estado brasileiro, apequena-se todo o esforço de construção de nossa cidadania.

Perdoem-me, leitores que até aqui me acompanharam, o longo relato de uma experiência pessoal. Mas, creio significativa a necessidade de pensarmos e repensarmos, incessantemente, a cidadania no Brasil. Talvez esse esforço colabore para percebermos que até mesmo o campo doutrinário do Direito pátrio ainda precisa se debruçar sobre nossas instituições, para pensá-las em si mesmas e em suas conformidades com os ditames de uma organização sócio-política, o Estado de Direito, que exige o compromisso constitucional de todo o aparato estatal.

* Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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