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Coronel Idalino acobertou subversivo em Salinas

Coronel Idalino acobertou subversivo em Salinas

Não pretendemos aqui praticar gesto de revisão histórica sobre a posição antropológica, sociológica e política do citado coronel do sertão, que tive a oportunidade de conhecer, em Salinas, na casa grande da Praça Moisés Ladeia

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27-07-2024 às 08h:38

Apolo Heringer Lisboa*

O Dr. Alencastro Araújo de Carvalho, natural de Ferros, MG, diplomado em Odontologia, em Juiz de Fora, provavelmente em 1916, ficou acoitado em Salinas por mais de um ano, sob proteção política do famoso coronel Idalino Ribeiro, dono de muitas terras e de muitos homens. Esta história é confirmada pelos seus filhos, que hoje vivem em Belo Horizonte, onde são profissionais de destaque e têm carinho especial por Salinas. O Alencastro Filho, a Zulma, a Ilka, deram-me as primeiras informações que permitiram este artigo.

Não pretendemos aqui praticar gesto de revisão histórica sobre a posição antropológica, sociológica e política do citado coronel do sertão, que tive a oportunidade de conhecer, em Salinas, na casa grande da Praça Moisés Ladeia – entre cujos descendentes tenho diversos amigos – mas relatar fato curioso da história de nossa terra.

Quem foi Alencastro Araújo de Carvalho? Homem de têmpera de aço e sensibilidade social à flor da pele. Muito preparado, íntegro e inteligente. Em 1930 apoiou a revolução comandada por Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, que destituiu Washington Luís no final do mandato de presidente do Brasil e conduziu Getúlio Vargas ao governo do País. Sempre se manifestara inconformado com as desigualdades geradas pelo capitalismo e os abusos do coronelismo do interior típicos da sociedade latifundiária, antes da industrialização plena do País. Por isto se posicionara contra a República do Café e tornara-se prestista, tendo apoiado as revoltas dos tenentes e, depois, a Revolução de 30.

No entanto decepcionou-se com o governo de Getúlio, segundo uma ótica muito próxima à de Luís Carlos Prestes e do Partido Comunista do Brasil, fundado no Estado do Rio. em 1922. Acreditando piamente em revoluções aderiu ao movimento que se organizava por todo território brasileiro chamado Aliança Nacional Libertadora. Foi seu presidente em Diamantina. Sua admiração pela figura de Prestes, o Cavaleiro da Esperança, era enorme, e quis o irônico Destino que, poucos anos mais tarde, fosse o Doutor Alencastro obrigado a fugir sertão a dentro, justamente para buscar asilo em terras de coronel, num município por onde havia, em 1926, singrado a serpeante Coluna Prestes. Como se sabe a A.N.L era parte de uma estratégia mundial do Comitê Internacional (Cominter), com sede em Moscou, para potencializar a força dos partidos comunistas em todo o mundo, através de frentes populares, o que daria melhores condições para Stálin enfrentar a maré montante do nazi-fascismo que levantava a cabeça na Itália, com Mussolini, na Espanha, com Franco, na Alemanha com Hitler e no Japão com Hiroíto, e que, evidentemente, poderia chegar às portas de Moscou, para tentar esmagar a cabeça da primeira revolução comunista vitoriosa do mundo moderno.

A A.N.L após conquistar grande apoio por todo Brasil, sobretudo entre intelectuais e artistas das cidades, e militares, caiu na tentação blanquista do golpe armado, através de levantes em quartéis de Natal, do Rio de Janeiro (Praia Vermelha) e outras cidades. Após curta e encarniçada luta, foram derrotados, no que passou à história como a Intentona Comunista de 1935. Luís Carlos Prestes passou à clandestinidade, junto com Olga Benário sua mulher, do Partido Comunista da Alemanha, sendo presos no decorrer dos acontecimentos, como está relatado no livro Olga. Os aliancistas de todo Brasil foram excomungados, caçados, presos e torturados pelos homens da polícia política de Felinto Muller. Preso em Diamantina, o Dr. Alencastro Araújo de Carvalho foi transferido para a prisão em Belo Horizonte, onde contou com a simpatia pessoal do Dr. Júlio Soares, médico, ex-diretor da Santa Casa de Misericórdia e cunhado do futuro ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, casado com Dona Naná. Estes eram da área política do governador Benedito Valadares, o interventor de Getúlio Vargas em Minas Gerais. Estas amizades pouparam Dr. Alencastro de graves complicações e encurtaram sua prisão.

Quando foi solto, o instinto e a razão do militante Alencastro sussurraram-lhe ao ouvido que cascasse fora, pois sua batata estava assando. Naquele sertão imenso do Jequitinhonha haveria de ter portos seguros para sua ameaçada pessoa esgueirar-se por uns tempos. Zarpou só, deixando a esposa para trás, visitando cautelosamente os municípios semeados sertão a fora. Acabou batendo em Salinas e gostando. Lugar distante, estradas péssimas recém-construídas, mundão perdido, com gente falando diferente. Parecia outro país. E melhor ainda: sem dentista diplomado. Teria como trabalhar e mostrar seu valor, conquistando a simpatia do povo. Instalou-se e foi do agrado geral. Fez muita caridade. Caiu no agrado do próprio coronel.

O tempo foi passando, aparentemente em brancas nuvens, menos para sua inquieta cabeça que abrigava tempestades e inquietações sobre o que estava para acontecer e lá ninguém sabia. Um feio dia aconteceu o que ele temia. Sua vida seria novamente desarticulada. Chega às mãos do assustado delegado local a ordem-de-prisão da polícia federal de Felinto Muller mandando catar o tiradentes local e enviá-lo sob escolta até Belo Horizonte. Foi um zum-zum brabo em Salinas, cujo povo é muito dado a zum-zum, ali apelidado de fuxico, que enche o tempo dos desocupados e dá tanto prazer quanto coçar bicho-de-pé e frieira. Afinal, o bom dentista, doutor Alencastro, não é possível..." é verdade? que é sobra dos revoltosos da Coluna, que é comunista ...bem que eu desconfiava... quando a esmola é muita até o santo desconfia...".

Naquele tempo não havia televisão e as explicações sobre os fatos mundiais eram dadas pelos padres aos crédulos, e a versão mais aceita era de que os comunistas realmente comiam criancinhas. E o boato, segundo Machado de Assis e Rui Barbosa, era de que alguns maus salinenses estavam acostumados somente à prática da antropofagia de adultos. Mas, criancinhas, aí já era demais ...

O Dr. Nadir, médico em Salinas, e amigo do Dr. Alencastro, soube da ordem-de-prisão e agiu firme em favor do amigo e colega dentista. Foi direto procurar o coronel Idalino, seu amigo. O Dr. Nadir havia chegado em Salinas com sua esposa também médica, Dra Maria Las Casas, indicado ao coronel Idalino pelo advogado de Belo Horizonte Dr. Plinio Las Casas, seu cunhado. Mas chegando à casa do Coronel lá já estava o assustadiço delegado pedindo orientação ao chefe Idalino. Este, após ouvir a leitura da ordem-de-prisão, e diante da mímica triste do médico, socou o ar e pronunciou sua decisão: Isto é mentira que estão inventando contra o Dr. Alencastro. Não tem cara nem jeito de comunista. Deve ser coisa de meus adversários políticos. Ele não sai daqui não. Vai continuar livre e trabalhando. Pode mandar dizer isto ao governador Dr. Benedito Valadares. Diga que foi o Idalino.

E o delegado saiu humildemente, para cumprir a ordem, dizendo: - Sim Senhor. O Dr. Alencastro acabara de ter mais uma aula de política, desta vez a seu favor, conhecendo assim, de experiência própria, o caráter autoritário e paternalista do coronelismo, que sempre combateu. Osmani Ribeiro, filho do Coronel Idalino Ribeiro e meu amigo, ex-companheiro de boiada e estrada do famoso Manuelzão, do conto de Guimarães Rosa, disse-me que o Dr. Alencastro era pessoa extraordinária, muito seu amigo e do Darcy Freire, mas que era muito bem comportado, não gostava de farra nem cachaça ou cigarro. Pois, segundo Osmani, ninguém é perfeito! Estava o Coronel muito satisfeito com o trabalho do dentista Alencastro, que cuidando da boca do povo ajudava-o a conservar o poder. Nesta época arrancava-se mais que obturava, e os protéticos não paravam de fabricar dentaduras, com belas gengivas, que iam do amarelo ao vermelho tinto e com dentes bastante pouco diferenciados entre si, qualquer que fosse sua posição na arcada. A dor de dentes bota o povo irritado contra tudo e pacificado ficava sem este incômodo que a arte do Dr. Alencastro operava.

E, para o Coronel, isto é que importava no seu território, não as arengas trazidas do "estrangeiro", das capitais. Animado e confiante com a concessão formal de asilo no território salinense, Alencastro manda buscar sua esposa em Diamantina, com os filhos pequenos. Dona Odila Vale, diamantinense, chega e fica eternamente grata ao solo salinense. E decide que o padrinho de batismo de seu filho aí nascido seria o Coronel Idalino Ribeiro. O esposo Alencastro ficou confuso. Afinal, ter um filho batizado na Igreja Católica, ele de firmes convicções marxistas, ainda passa, pelo amor à esposa e respeito à sua fé. Mas ainda por cima tendo um coronel do latifúndio por padrinho?

“Espera um pouco, Odila. Vamos pensar melhor. Eu sei que devemos ser gratos, mas não vamos exagerar. A luta de classes existe, Odila e eu também tenho minha fé, respeite meus princípios, vá! Aqui no mato tudo bem, mas, e isto divulgado na capital entre meus amigos e camaradas? Além do mais o nome escolhido para o filho é Marx" sua homenagem ao autor de "O Capital" e fundador do comunismo dito científico, baseado no materialismo histórico e dialético. Não conseguia dormir o atribulado Alencastro, com sua esposa insistindo, como sabem fazê-lo as mulheres quando querem por que querem uma coisa. Afinal – raciocinava Alencastro – deveria estar grato ao homem que lhe concedeu asilo; pois, se se mostrasse intransigente nos princípios, até mesmo diante da esposa confirmaria o preconceito de que os comunistas são maus.

Que fazer então, espremido entre a crença e a vida "To be or no to be". Venceu a insistência da esposa. O coronel iria batizar Marx, mais tarde, menino já grandinho. O comunismo sofreria seu primeiro baque em Salinas, por conta da gratidão "pequeno-burguesa". Mas Alencastro poderia dizer como Adão diante de Deus, dando as costas às portas do Paraíso: Senhor, foi a mulher que tu me deste! E o coronel ficou, pelo menos uma vez, do lado dos comunistas.

A história escreve certo por linhas transversas. E viveram muito felizes em Salinas nos anos de 1938 e 1939. A vida do casal foi seguindo seus desígnios, com o inteligente e admirável Dr. Alencastro criando sua família com a maior dignidade e honestidade pessoal, admirado por seus próprios inimigos políticos os integralistas. Foi amigo de Juscelino Kubitschek, que admirava seu caráter. Morreu em 1981, em Belo Horizonte, conservando até ao túmulo suas convicções socialistas.

*Médico, Professor, Ambientalista raiz, Político e Autoridade em “Bacias Hidrográficas”.

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