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Amigos petistas: ao parlamentarismo!

Amigos petistas: ao parlamentarismo!

O presidencialismo é um sistema de governo que simbolicamente imita a autoridade do monarca, mas sem a tradição e os rituais que o sustentam.

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05-07-2024 às 09h:45

José de Magalhães Campos Ambrósio*

O Partido dos Trabalhadores e o próprio presidente Lula, se ativassem sua habilidade de longo prazo e do pensamento estrutural, veriam que o parlamentarismo não só é o melhor sistema de governo como é do melhor interesse do petismo.

Sempre que critico o presidente diante dos meus amigos petistas e lulistas, ouço as mesmas lamentações: “Fazemos o que é possível, fomos eleitos com uma frente ampla, olha esse Congresso conservador.” Bem, queridos amigos petistas, tenho a solução para seus problemas: vamos ao parlamentarismo!

Para o eleitor convicto de Lula, essa proposta soa como um golpe, já que seria abominável pensar que Arthur Lira comandaria o governo – antes dele, o argumento era Eduardo Cunha. Que Lula foi eleito para presidir e isso minaria seu poder.

Nada mais longe da verdade. Em apenas 0.3 segundos de reflexão, perceberiam que Lula e o PT só teriam mais poder e que as intenções propaladas pelo petismo de justiça social teriam possibilidade de conversão em gesto efetivo.

Vou provar isso, mas antes, permitam-me uma digressão.

O presidencialismo é um sistema de governo que simbolicamente imita a autoridade do monarca, mas sem a tradição e os rituais que o sustentam. A afinidade desse sistema com uma lógica autoritária é estrutural – embora, obviamente, regimes parlamentares também possam ser autoritários de forma conjuntural.

No Brasil, tanto à direita quanto à esquerda, o presidencialismo é enraizado na mentalidade política por duas razões distintas. No primeiro caso, a prevalente temática de homem forte que mantém a ordem, organiza as hierarquias necessárias para a manutenção da ordem social.

Entre os progressistas, o argumento se baseia no subdesenvolvimento brasileiro: o poder de agenda conferido pelo presidencialismo poderia funcionar como uma alavanca de Arquimedes para tirar o Brasil do atraso e colocá-lo no lugar que merece; brilhantes pensadores como Darcy Ribeiro e Roberto Mangabeira Unger argumentam nesse sentido.

E esse argumento poderia estar correto se tivéssemos condições normais de temperatura e pressão, mas estamos no Brasil, um País para não amadores.

Temos a história, e história é magistra vitae, mestra da vida. A história da Nova República e da Constituição Brasileira também é a história da revelação da força e do poder que o parlamento tem, e deve ter. A ascensão de Eduardo Cunha à presidência da Câmara revelou toda a força da Casa, e ela não irá retroceder.

Por isso, é melhor canalizar esse poder. Hoje, o da Câmara é disfuncional, corrupta e improdutiva – e sua dinâmica com a chefia de governo é frequentemente um escárnio, algo de quinta série.

O sistema parlamentar – e não essa brincadeira de mau gosto que Barroso propõe de semipresidencialismo – corrige estruturalmente essa desordem. Contudo, não estou aqui para provar o quanto a lógica do Parlamento é superior, mais democrática e mais transparente que o atual modelo presidencial. Quero convencer Lula e os petistas que a adoção desse modelo é do melhor interesse deles.

Vou tomar por base o sistema parlamentar espanhol pelo conhecimento e experiência que tenho nesse país, que, entre outros aspectos, opera com a necessária lista fechada. O pressuposto fundamental que o parlamentarismo favorece é o incremento da democracia partidária interna, tornando a forma-partido muito mais funcional nos seus aspectos representativos - a lista fechada cumpre dois requisitos fundamentais nesse caso, primeiro obriga que qualquer candidato lute por toda a lista e não só por si mesmo, afinal, quanto mais cadeiras o partido obtiver, mais chances um tem de ascender a deputado; em segundo plano porque estimula uma vigilância e competição produtiva a fim de ocupar os primeiros lugares da lista. A forma-partido seria drenada de sua distorção individualista contemporânea, principalmente numa configuração multipartidária brasileira na qual a fácil possibilidade de saída sem punição real desativa a voz interna dos partidos, facilitando a reprodução de suas direções quase indefinidamente.

Vamos fazer um exercício de imaginação, considerando os dados do primeiro turno de 2022 – já que outra patologia do presidencialismo é nos jogar na rinha de rejeição de um segundo turno.

Se em 2022 tivéssemos eleições parlamentares e os principais candidatos fossem os líderes de seus respectivos partidos, eis o provável cenário da governança brasileira hoje:

PT: Luiz Inácio Lula da Silva - 48,43% - 248 assentos

PL: Jair Bolsonaro - 43,20% - 222 assentos

MDB: Simone Tebet - 4,16% - 21 assentos

PDT: Ciro Gomes - 3,04% - 16 assentos

Outros partidos e candidatos menores: 1,17% - 6 assentos

Muitas filigranas poderiam ser objetadas aqui. Onde estão os outros partidos que são tão poderosos? Pois é. Com uma tacada, o parlamentarismo resolve a estrutura partidária fragmentada, anárquica e autoritária. No entanto, isso nos levaria às virtudes do sistema, o que não é o caso agora – prometo um texto dedicado a isso.

Pode-se objetar também que a transformação para um regime parlamentar não revelaria a disputa dessa maneira. É verdade, precisaríamos conhecer qual seria a estrutura das listas estaduais, se emergiriam lideranças capazes de furar a verticalização nacional ou não e se esse sistema seria capaz de obliterar o clientelismo que torna prefeitos e deputados um corpo simbiótico. Porém dois detalhes: 1) é um cenário muito mais realista que o de Lira como Primeiro-Ministro e 2) Talvez fosse ainda melhor para o PT e Lula, já que é um partido experiente, com um líder ainda popular e que conserva a lealdade de 20-30% do eleitorado; talvez seja, hoje, um dos poucos partidos preparados para esse sistema. (30% das cadeiras seriam 171, no pior cenário de derrota parlamentar, ainda muito superior ao melhor cenário de vitória presidencial).

Hoje, se considerarmos a base de partidos organicamente de centro à esquerda (Federação PT-PV, PCdoB, PSB, PSOL-REDE, PSB, PDT), a soma chega a 126. Com Lula liderando esse espectro em uma eleição, esse número praticamente dobraria, alcançando quase a maioria do Congresso! Precisaria negociar apenas com o MDB e o PDT para ter um governo capaz de governar e avançar a agenda do País.

Não precisaria lotear ministérios para partidos de oposição, negociar detalhes com cada cacique partidário, viver no jogo de chantagens dos bastidores e dos recados da imprensa.

Poderia agir sem lamúrias, e agora com responsabilidade (Peter Parker manda lembranças). Teria menos subterfúgios para se dizer vítima – muitas vezes real – das armações da imprensa, do judiciário e, claro, do chefe do Parlamento.

Outra consequência que nos levaria a uma democracia de alta energia: ver Lula, ele mesmo, diretamente no Parlamento, defendendo sua agenda diante de uma oposição com voz. Assistir aos debates de investidura ao governo espanhol foi transformador, dez horas da investidura falida de Alberto Nuñez Feijóo e outras dez de Pedro Sánchez, ambos defendendo um programa de governança, ouvindo contestações e apoios, e sendo obrigados a responder ali, ao vivo, é revigorante.

E teríamos ali, sentado como deputado, um Jair Bolsonaro capaz de liderar uma oposição real? Acredito na capacidade de Lula liderar um grupo parlamentar, mas tenho minhas dúvidas sobre Bolsonaro. De qualquer forma, seria revelador da capacidade de contraditório, de levar uma agenda e de fazer do argumento e da ação o foco da ação política. O parlamentarismo obriga os políticos a parar de trabalhar como candidatos o tempo todo e a atuarem como políticos.

Não essa estrutura opaca em que o presidente não comparece ao parlamento para defender seus projetos diante dos representantes do povo, vivendo de articulações e fofocas de gabinete, de corredor, de disse-me-disse.

Não tenho ilusões de que a implementação de um sistema parlamentar nos conduzirá inexoravelmente ao paraíso, mas é a nossa melhor possibilidade; o Presidencialismo já falhou. Usando Unger contra Unger, é hora de experimentar seriamente o que nunca tentamos de verdade desde que somos uma República.

Maquiavel ensina a fazer da necessidade, virtude. Sei que as direções das organizações partidárias não pensam no longo prazo: no curto prazo, só querem liberdade de ação, e isso é frequentemente confundido com retirar vozes do caminho como uma válvula de segurança. Assim, um instrumento que poderia atuar como “feedback” se converte em uma institucionalidade castrada combinada com a domesticação do descontentamento; é isso que o Presidencialismo brasileiro se tornou.

O caminho discursivo do PT não é produtivo, já descrevi isso em outro lugar (aqui). Nada indica que a transformação institucional seja o caminho escolhido; parecem preferir a manutenção desse mal-estar que gera ganhos secundários perversos para o País.

Talvez este texto acenda uma chama de paixão, e os petistas, em busca de seus melhores interesses, acabem tropeçando em uma astúcia da razão que poderá levar todos a um novo nível de racionalidade coletiva (viu, amigos petistas, venham para o outro lado do rio com Hegel).

*José de Magalhães Campos Ambrósio é professor de Teoria do Estado e da Democracia na Universidade Federal de Uberlândia.

magalhaesjose@gmail.com

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  1 Comentário

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Assino embaixo. Parlamentarista convicto, ainda não havia visto defesa tão interessante dessa forma de governo , adicionando tal perspectiva petista real e possível.

 

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