
Rica cultura italiana em Juiz de Fora, MG - créditos: divulgação
Getting your Trinity Audio player ready...
|
26-01-2024 às 16h46
Wilson Cid*
Etnia, qualquer que seja a definição que os mestres lhe emprestem, acaba sendo mesmo, simplesmente, isto que podemos sentir no convívio com os estrangeiros: o patrimônio que determinado povo constrói, tendo como ingredientes, em doses alternadas, a cultura, os hábitos do cotidiano, os traços genéticos, o caldo das experiências históricas, os pendores para as artes.
Tudo isto e mais o jeito de ser, de falar, de agir. Com tão farta composição de elementos uniformes, percebe-se que raros são os povos que puderam organizar uma etnia tão rica. Riquíssima, no caso dos italianos. Todos? Se não todos, pelo menos os que vieram conviver conosco este vale do Paraibuna, em cujas margens fincaram marcas indeléveis, e nas ruas de cada bairro o sinal dos seus passos continuados, que rompem as manhas rumo ao trabalho.
Em outubro de 2015, a convite do superintendente da Fundação Alfredo Ferreira Lage, Toninho Dutra, à frente de uma equipe, fomos ajudar a colher depoimentos sobre aspectos étnicos que italianos de ontem e seus continuadores de hoje legaram a Juiz de Fora dos nossos dias. Em especial da Calábria, pois calabresa é a maioria dos que aqui aportaram e escolheram a cidade para reorganizar a vida e construir descendências, distantes de uma pátria onde as incertezas eram muitas.
Digamos, com base em tudo que se ouve e que se sabe, que não há quem não seja capaz de identificar um deles, ainda sem conhecê-lo formalmente. Mas como? Na verdade, basta um elemento, o primeiro deles, espontâneo e invulgar: o temperamento apaixonado pelas coisas, o sêmen dadivoso que inoculou a sua etnia. Então, venham de que aldeia vieram, seja em que tempo for, eles logo se apaixonam pelo que fazem. Às vezes, suaves, alegres e a ternura em muitos; em outras, quentes e vulcânicos. Capazes de atitudes que saltam de um polo a outro em um átimo; por exemplo, da dor à alegria, mas sem que em um caso ou no outro dispensem, para argumentar, os gestos largos dos braços que se debatem no ar. Comunicam-se teatralmente. Gestuais. Nasceram atores. Quem seria capaz de negá-lo?
Românticos. Já foi assim o segundo deles entre nós, que aqui aportou quando o século 19 morria no horizonte e no tempo, encontrando no Alto dos Passos, em 1870, o primeiro, Antonio Caiaffa, solitário bandeirante que comandava armazém de secos e molhados. O segundo foi Giuseppe Antonio Picorelli, o encarregado de acender os lampiões de nossas ruas; lampiões que foram a véspera das lâmpadas de Bernardo Mascarenhas. O contrato que Picorelli celebrou com a Câmara para a prestação desse serviço ele próprio redigiu, com a alma de quem parecia menestrel sonhador.
Competia-lhe então “conservar acesos os lampiões em todas as noites que não forem de luar, mesmo nas noites de luar enquanto a mesma lua não clarear, e assim mantê-los até o dia raiar”. Para essa tarefa ganhava 4 contos de réis por ano. Esse noturno Picorelli, houve quem dissesse, percorria solene e gentilhomem a Rua Direita, como se andasse na orla de Nápoles ou gondoleiro de pés enxutos num canal imaginário. Querem coisa mais itálica do que isso?
O historiador e jornalista Julio Vanni, falecido há dois anos, entendia que é impossível a um italiano passar pela vida sem deixar marcar indeléveis de suas paixões. Para ele, que não se referia especificamente a Picorelli, não haveriam de ser diferentes aqui os paisanos, eis que são assim em qualquer parte do mundo. Vanni tinha autoridade para dizê-lo. Sempre festejadíssimo em Lucca, de onde voltava cada vez mais italiano para cultivar os valores de sua gente, como quem, cultiva uma árvore generosa e frondosa.
Outro componente característico é a disposição para o trabalho; mais que disposição, um fervor, certa obstinação que jamais esbarra em preconceitos. Não tem medo do trabalho. E é verdade. Vejamos o caso dos jornaleiros, atividade que eles absorveram largamente desde sua chegada. Nossas bancas de jornais dão a parecer que são pedaços minúsculos da Itália. Tanto assim, que foram poucos os brasileiros e outros nacionais que ousaram demovê-los dessa preferência, árdua, nada fácil, numa jornada que já começa com o despertar das madrugadas. Antes das bancas, nossos italianos exercitavam cansativas caminhadas sob cargas pesadas.
Os juiz-foranos que foram os meninos dos anos 40 e 50, ávidos pelos almanaques do Tico-Tico, Gibi e Durango Kid, avistavam, ao longe, o velho Ercole Caruso caminhando, ofegante, pelo Morro da Glória, com algumas dezenas de revistas e jornais sustentados por largas correias de couro, que pendiam do pescoço e terminavam no braço esquerdo. Isso anos a fio, a coluna cervical irremediavelmente condenada.
Pois, com um sotaque desinteressado em se fazer menos compreendido, Caruso caminhava e apregoava o que tinha. O que mais vendia, além do Jornal das Moças, era mesmo a revista dos heróis infantis Bolão, Azeitona e Reco-Reco. E partia, sem apregoar a Fanfula, quando a Itália não andasse bem nos campos de batalha…
Wilson Cid é jornalista, trabalhou na rádio “Itatiaia” e na “sociedade”; em Juiz de Fora, no “Diário Mercantil” e no “Diário da Tarde”; trabalhou no “Hoje em Dia”, e foi correspondente de “O Globo”; no “Diário Regional” e “JF Hoje”; participou da “TV Mariano Procópio” e do jornal “Ter Notícia”.