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A legitimidade e o povo perderam a eleição venezuelana

A legitimidade e o povo perderam a eleição venezuelana

Sabemos que aquele território é pleno em imensas riquezas minerais, com a maior reserva de petróleo e gás. Também já se sabe que cobiça a dominação do vizinho território de Essequibo

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01-08-2024 às 09h:49

Rogério Reis Devisate*

Estamos vendo o fogo cruzado em torno da eleição venezuelana. Tudo envolve poder e legitimidade. A questão da legitimidade está atrelada à verdade, que é uma só.

O poder precisa de valoração, para ser reconhecido. No mundo ocidental e em tempos de proliferação de tanta transparência e fluxo de informações, não há mais espaço para artimanhas que sejam empilhadas para a construção de torta narrativa. Sim, podem haver testemunhos diferentes sobre a mesma circunstância, mas não outra realidade, assim como podem existir versões sobre o mesmo fato, mas não a negativa do fato.

O poder precisa de reconhecimento, legitimidade, respeito e validação. Sem reconhecimento, o poder começa a erodir no primeiro momento. Sem legitimidade estará sujeito a ser consumido gradativamente, como sofre a madeira atacada por cupins. A legitimidade é atributo do poder e o reconhecimento do seu valor. Sem isso, não estará validado; sem validação, não valerá nada.

O que ocorre, hoje, com a eleição venezuelana passa por esses contextos e envolve o destino da rica Nação e do seu povo empobrecido. Viajei a Roraima e lá visitei um dos locais de acolhida dos imigrantes venezuelanos e vi muitas famílias caminhando pelas margens das estradas. Também conheci venezuelanos que foram viver e trabalhar em Manaus, Salvador e Buenos Aires e esses tinham narrativas coincidentes, estando agradecidos por ter sido recebidos e estar em lugares que lhes proporcione emprego com pagamento que consideram justo e melhores condições de vida e segurança.

Sabemos que aquele território é pleno em imensas riquezas minerais, com a maior reserva de petróleo e gás. Também já se sabe que cobiça a dominação do vizinho território de Essequibo, o que poderá ampliar enormemente a sua pujante riqueza. Paradoxo curioso é que o seu povo de nada usufrua. Não falamos de partidários de um ou outro grupo político: falamos de toda a população do país. Que modelo é este de Estado que não serve ao bem estar do seu povo?

Temos que refletir sobre quem seria o beneficiário de toda essa riqueza e consta que os seus maiores compradores são a China, a Índia e os EUA. A partir desse cenário podemos considerar que a eleição venezuelana interessa – e muito – aos três países e, se for mesmo assim, a questão interessa ao mundo globalizado, pelo fato de que, ali envolvidos, estão interesses de alguns dos mais dinâmicos povos e nações. De fato, a geopolítica está sob forte especulação.

A questão é menos saber quem ganhou a eleição e sim o modo pelo qual isso terá ocorrido, pois somente com a legalidade e a legitimidade do processo eleitoral ter-se-á a validação do resultado, não somente pela Justiça venezuelana, mas, sobretudo, no íntimo das mentes e corações do seu povo – e dos demais países. Isso deve nos fazer refletir, mormente quando a OEA – Organização dos Estados Americanos já se pronunciou a respeito, assim como a Espanha, Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, República Dominicana e Uruguai. Mais do que isso, significativa parcela da população foi para as ruas, protestar. Protestos, lá, são mais surpreendentes, tendo em vista o que se noticia sobre o regime local. Hoje, consta que exército e polícia estão nas ruas e que centenas de pessoas já foram detidas.

A ameaçadora suposição de que poderia rolar sangue por protestos ou golpe em torno da eleição – que, então, nem tinha ocorrido – foi mais um sinal de que as coisas não estavam indo bem, já que não é natural que o governante de plantão ponha “fogo no parquinho” e alimente a chance de deterioração da paz interna e da estabilidade mínima das relações sociais.

Quem ganhou as eleições? Essa não é a pergunta adequada, no caso, por ser razoável se considerar que o que interessa mesmo saber é quem perdeu e é isso o que o povo venezuelano está querendo dizer, quando protesta nas ruas. Quem perde são a legitimidade, a confiança e a credibilidade. Quem perde com as fraudes nas eleições e com a desvalorização do pleito eleitoral não são os países que resistem no reconhecimento do resultado eleitoral e sim o povo venezuelano, que parece não mais ter gordura para queimar.

O governo de longa data acaba chegando ao final do seu ciclo, pela natural evolução do ponteiro do relógio. Curiosamente, os movimentos políticos que se estruturam por meio da força e dos manipuladores jogos de poder querem fugir dos ciclos, quebrando essa linha natural do poder e forçando novo mandato para ferir de morte o processo eleitoral e o ânimo da Nação para o dia seguinte, acendendo a sensação de que o “quem confia na fera, pela fera será ferido”, pois, de fato, ninguém ficará imune a eventual manipulação do processo eleitoral e do resultado.

A eleição foi no domingo e até hoje o silêncio desses dias pós eleição é fator de temor, porquanto pode ir consolidando o “status quo”. Aliás, ainda mais do que isso, o silêncio desses dias é estrondosamente reconhecedor do conceito tão veiculado de que já se teria vencedor...  Alguns pronunciamentos externos alvitram obtenção das atas para conferência do resultado. Agora que o exército e a polícia foram para as ruas, que se fez prisão de centenas de pessoas e com o povo marchando, não há a menor garantia de que, de imediato, com a manutenção da situação, haverá paz local. Tudo passa pela legitimidade do processo. É o pleito eleitoral que está sob exame, sob averiguação e sob possível conferência, mediante a recontagem dos votos – algo possível por ser voto impresso!

A propósito, isso não seria possível aqui. Consideremos que, enquanto no futebol se confere momentos (pelo uso do VAR, por exemplo; em português, árbitro assistente de vídeo), nas lojas e supermercados nos entregam recibos de compra e pagamento e no imposto de renda recebemos o protocolo de envio, deixamos de ter votos impressos e, além disso, os comprovantes de votação em nossos pleitos eleitorais por conta da ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade 5889, julgada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que excluiu da legislação eleitoral o art. 59-A, da Lei 9.504/97, que previa a impressão do comprovante de votação, dizendo que "no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto" – ainda prevendo que "o processo de votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica".

Curiosamente, na Venezuela se correu para proclamar a vitória de Maduro. Ocorre que a proclamação tem apenas a natureza de declaração, anúncio. E o que anuncia não é definitivo apenas por ter sido anunciado, já que tem dependência causal com o resultado válido e, também, com toda a legalidade e legitimidade do processo eleitoral.

Ora, se houver a compreensão de que, com a proclamação, o jogo estaria encerrado, corre-se o risco de que, no futuro, outra proclamação encerre qualquer outro processo eleitoral e declare vencedor (qualquer um!). Por fim, convém relembrar que a recontagem ou conferência de votos definiu as eleições nos Estados Unidos, em 2020 (vencida por Joe Biden, após o ocorrido na Geórgia) e em 2000 (quando George Bush foi declarado vencedor, após batalha judicial e decisão da Suprema Corte dos EUA).

Que não o povo não seja obrigado a engolir o que não reconhece. Que o povo possa, no futuro, bater no peito e dizer que eleições são limpas, seguras e transparentes. Que, na falta disso, não se considere que haveria simples questão interna e sobre a qual não haveria interesse de outros povos e nações: todos temos interesse na lisura e na correção dos universos eleitorais, na verdade e na legitimidade do exercício do poder, inclusive pelo fato de que a Soberania é exercida em face de outros países e povos, notadamente com as fracas fronteiras desse mundo globalizado e do sensível reaquecimento da Guerra Fria.

Que o povo venezuelano seja o grande e único vencedor. Que se lhe outorgue processo eleitoral liso, escorreito e legal, permitindo-se o reconhecimento da vitória de quem quer que seja – desde que não haja dúvidas sobre o próprio sistema e a legitimidade do resultado. O povo e o país merecem e o mundo exige, sob pena de ficarmos feridos pela fera da manipulação, da inverdade e da insegurança jurídica e social, que se fortalece e, decerto, fará novos ataques.

*Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ.  Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.

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