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A gestão pública e o controle

A gestão pública e o controle

Uma visão realista na era do consensualismo. O tema da consensualidade ganhou envergadura há mais de uma década no Brasil, com evoluções normativas e jurisprudenciais

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22-08-2024 às 09h:38

Marcílio Barenco Corrêa de Mello*

Em agosto de 2024, ressoaram vozes retumbantes na imprensa e entre juristas acerca das possíveis vicissitudes ou virtuosidades do sistema do consensualismo adotado pelos órgãos controladores, em especial, pelo modelo inaugurado em 2022 pela secretaria executiva do Tribunal de Contas da União (TCU).

Em artigo do jurista Roberto Livianu (“Nos tribunais de contas não se negocia”, 2024), revelou-se crítica ao modelo adotado pelo TCU, instituído pela Instrução Normativa n. 91/2022, que instituiu a SECEXConsenso, para indicar um papel de fiscalizar, controlar e julgar administrativamente as contas públicas, de modo a afastar a concepção de “balcão de negociação” e “de Câmaras de Mediação”, indicando exclusividade do Ministério Público à celebração de acordos com a administração (acordos de leniência, termo de ajustamento de conduta, etc.).

Há quem defenda que não se encontra no rol de competências constitucionais dos Tribunais de Contas (art. 71, da CR/88) o papel de conciliador ou mediador, o que não autorizaria a sua atuação “para além-mar” de suas funções típicas. Contudo, também não há nenhuma passagem constitucional que indique exclusividade deferida aos Ministérios Públicos como indutor da celebração de acordos no âmbito da administração pública, em que pese cases de sucesso (ex vi Projeto COMPOR do MPMG). A matéria aqui debatida é antiga, como num “jogo de forças dos controladores” entre Ministério Público, Controladoria-Geral, Advocacia Pública, Tribunais Arbitrais, Tribunais de Contas, Autarquias estatais ou Poder Judiciário, a extrair quem detém a atribuição e/ou melhor oportunidade para ser conciliador/mediador do “acordo ideal ou solução adequada”, que alcance o melhor interesse público para boa gestão de recursos públicos ou que defina o saneamento de irregularidades já consubstanciadas, postos a seu jugo.

Nestes casos, o melhor para se solucionar a questão controvertida é a aplicação da lei geral. Explico: a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seus artigos 26 e 27, traz legitimação ativa disjuntiva para celebração de acordos no âmbito da administração pública, isto é, qualquer autoridade administrativa poderá, para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável. Ademais, a decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos.

A extração legislativa de norma federal nacional é clara: todos são legitimados para celebração de acordos, inclusive no âmbito dos quatro entes que compõem a federação brasileira. O ideal é que não ajam isoladamente e em sobreposição de ações de controle, a gerar dúvidas sobre eventual objeto deficiente que não contemple a completude do interesse público relevante, o que poderá ser objeto de questiúnculas para anulação da negociação firmada, gerando insegurança jurídica. O tema é complexo e as técnicas de negociação possuem particularidades que não podem ser desprezadas. Uma vez indagado acerca do que falta para existência plena da teoria do consensualismo brasileiro, indiquei – sem pestanejar – a norma adjetiva que os processualistas chamam de procedimento.

O tema da consensualidade ganhou envergadura há mais de uma década no Brasil, com evoluções normativas e jurisprudenciais, o que me instigou, desde então, um estudo aprofundado da matéria em nível de doutoramento em direito em país da comunidade europeia. Desde já, ressalto que deve haver profundidade e densidade de conhecimentos científicos para criticar ou apoiar um ou outro modelo de sistema de solução de conflitos que já é realidade pragmática na administração pública brasileira e nos órgãos de controle, o que confesso enxergar.

Os meios alternativos de solução de conflitos ancorada na terceira onda renovatória da Justiça, denominada técnica do sistema multiportas (In Mauro Cappelletti e Bryan Garth), facultarão às partes interessadas (o gestor público e o particular contratado) ter à disposição variada forma de desfecho para as questões conflituosas pela via extrajudicial. Não à toa que os métodos consensuais de solução de disputas foram previstos na Lei federal nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos), com destaque para o emprego da arbitragem, da conciliação, da mediação e do comitê de resolução de disputas, sendo igualmente possível a utilização de outros mecanismos decorrentes da autonomia privada, para além da própria jurisdição estatal.

Neste mister, nada obsta que os órgãos de controle – por meios autocompositivos ou heterocompositivos – se valham dos instrumentos válidos e participem na qualidade de intervenientes, para facilitar os acordos firmados na (re)solução consensual da controvérsia, podendo contribuir para a correção de vícios e a entrega final do objeto contratado em benefício da sociedade, sem a necessidade de a questão ser submetida às barreiras estabelecidas no âmbito do processo heterocompositivo (processos judiciais ou arbitrais).

Há, contudo, a necessidade de se proceder à travessia da ideia de administração unilateral e imperativa, em direção a uma nova forma de administração dialógica nos dias atuais, revisitando os conceitos de indisponibilidade do interesse público e de reserva de jurisdição para o alcance dos fins pretendidos. O modelo teórico do direito administrativo em Otto Mayer (1947) – que vivera entre 1846-1924 –, que publicou originalmente em 1895 a sua obra Direito administrativo alemão, consolidou a autonomia científica desse ramo da ciência jurídica. O estudo desenvolvido à época adotou a concepção de relação de império e de unilateralidade da ação administrativa.

No início do século seguinte (XX), o jurista e sociólogo francês Maurice Hauriou (1927), que vivera entre 1856 e 1929, também desenvolveu estudos dedicados à reflexão sobre o direito público em geral pautado na ideia da puissance publique, em que havia prevalência da autoridade pública, dos atos unilaterais imperativos e da posição de supremacia nas contratações ajustadas (cláusulas exorbitantes), sempre fundadas na consecução de objetivos que o Estado teria como obrigação de cumprir.  

A seu turno, o jurista francês Léon Duguit, que vivera entre 1859 e 1928, fora fundador da Escola do Serviço Público (Escola de Bourdeaux), cravando-a na obra intitulada Transformações do direito público, publicada em 1913, em que apresentara a ideia de que o Estado não era “um ente soberano”, mas sim um conjunto de serviços públicos no interesse da coletividade. Com base nos estudos de Duguit, o que passou a importar é a finalidade da administração pública e de suas políticas públicas realizadas, por meio dos serviços públicos prestados aos cidadãos em geral. Aqui, o poder de polícia (vetusto poder de potestade) transformou-se exceção à regra, passando a ser utilizado somente em questões em que se havia necessidade de vetar as liberdades individuais que pudessem vir a prejudicar o interesse da coletividade, sempre em caráter excepcionalíssimo.

Nesse turno evolutivo de conceitos e do Direito Administrativo, iniciou-se a transição da ideia do Estado como entidade que impunha obrigações aos cidadãos para uma nova perspectiva, mais voltada à busca pelo desenvolvimento da solidariedade social, em que a regra passou a ser o dialogismo administrativo.

A administração pública dialógica revela-se como um novo modelo de boa gestão para atender aos interesses da sociedade, transcendendo os três modelos típicos de estruturas administrativas: a) patrimonialista em Estados não democráticos; b) burocrática em Estados formalistas da máquina pública; e c) gerencial, com resultado que melhor supra as necessidades dos administrados com supedâneo em lei. Esta última, na visão de Gustavo Justino de Oliveira (2010), caracteriza-se por um atuar pautado no consenso empreendido a partir de diversos meios de comunicação com a sociedade civil, decorrendo aproximação entre o Estado (órgão gestor ou controlador) e os particulares (ou controlados).

Nota-se, claramente, que a administração pública dialógica abre um espaço promissor para a atuação administrativa consensual, na busca de valores e objetivos que permeiam a ordem constitucional vigente de atuação preventiva e protetiva, como movimento de modernização da gestão administrativa, que, rompendo com a ideia de imperatividade, contempla um novo modelo pautado no diálogo, negociação, cooperação e coordenação, sem abandonar a lógica da autoridade, agora matizada pelo dialogismo.

Em crítica jornalista investigativa, Breno Pires (Revista Piauí, 2024), apontou malefícios do chamou “balcão de negociação” acerca da SECEXConsenso, imputando resolução indevida, com prejuízo a interesse público em dívidas bilionárias sem intervenção de órgãos como AGU, MPU e CGU. Afastadas as impressões subjetivas ali lançadas, qualquer acordo, como dito anteriormente, está sujeito à revisão pelos demais controladores que não participaram da avença. E aqui lanço questão de ordem que está sujeita ao aprimoramento da própria SECEXConsenso: 1) ampliação dos stakeholders que funcionam nas propostas de solução consensual, com convite desde as primeiras rodadas de negociação; 2) ampliação dos legitimados à apresentação das propostas de solução ao próprio jurisdicionado (cidadão e empresas) e ao Ministério Público junto ao TCU; 3) inexistência de alçada mínima para ingresso com pedido.

Talvez este tenha sido o maior deslize da proposta inaugural que preconiza a IN 91/2022, sem experimentação aberta ao consensualismo de todas as causas e hipóteses, a não se concentrar em causas complexas e de grandes vultos financeiros, mediante análise discricionária de relevância, risco e materialidade de grande impacto social. Mesmo assim, a possibilidade de celebração de acordos é de bom alvitre, está alinhada à melhor doutrina do Direito Administrativo contemporâneo e não pode ser extirpada por questões pontuais que podem e serão aprimoradas.

Não nos esqueçamos que o corpo técnico do TCU funciona nas negociações, com apontamento objetivos de experts, a espancar a “ideia de perde e ganha” dos negócios privados, servindo de mote – inclusive – para controle de legalidade póstumo das balizas do acordo, no qual o Ministério Público junto ao TCU tem vez e fala como fiscal da lei, antes da homologação da proposta pelo Pleno do TCU, apesar de aquele não participar das rodadas de tratativas de negociação, o que para mim reputo um déficit procedimental no consenso, passível de aprimoramento do sistema de controle de contas.

Nesse sentido, o Partido Novo propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 1.183, por meio da qual questiona o protagonismo do TCU, ante a conveniência e oportunidade na admissibilidade da seleção de propostas que serão levadas ao consenso do Tribunal, agindo antes mesmo da tomada de decisão do administrador público, em especial, nos contratos administrativos de concessão de serviço público de longo prazo, cujos caminhos administrativos podem desaguar na responsabilização, caducidade com a retomada do objeto da concessão e posterior (re)licitação (se for o caso). Aduz que a repactuação contratual (reprogramação de investimentos e pagamento de outorgas diversas do contratado) coloca em xeque a proteção eficiente à boa gestão pública, a desaguar em “proteção deficiente”, violação da legalidade, separação dos poderes, moralidade administrativa e princípio republicano.

Pediu, ao fim e ao cabo, a suspensão das atividades da SECEXConsenso/TCU, com sua extinção por declaração de inconstitucionalidade da IN 91/2022, decorrendo prejudicialidade de acordos já firmados.

Vejam que a tentativa de anular os acordos se dá por via oblíqua de declaração de inconstitucionalidade do TCU em acordos firmados por meio de órgão executivo criado para esse fim, e vai de encontro aos ideários da administração pública dialógica e a teoria do consensualismo. Com a palavra final do Supremo Tribunal Federal (STF), que pode determinar ajustes e aprimoramento do sistema de controle via consensualismo, ou retroceder declarando-o inconstitucional, ao impor o regime administrativo burocrático e fechado em matéria de acordos administrativos.

A teoria dos múltiplos equilíbrios contratuais (in Eric Silva e Marcos Nóbrega, 2024) aponta diversos fatores impeditivos de uma gestão de riscos eficiente aos contratos complexos e de grande duração no tempo, como nas atividades de concessão aeroportuárias, de infraestrutura, de telefonia, de energia, entre tantos outros. A atual reforma tributária realizada pelo Congresso Nacional já é suficientemente capaz de trazer reflexos deletérios aos contratos administrativos firmados outrora, em que a nova lei de licitações e contratos trouxe expressamente a teoria do consensualismo como possível solução (conciliação, mediação, arbitragem ou comitê de resolução de disputas).

Brenno Grillo (O bastidor, 2024) acrescentou elementos de impugnação ao modelo da SECEXConsenso ao apontar sigilosidade das tratativas, modelo de “salvamento de empresa de telecomunicação em recuperação judicial”, havendo autorização de transformação do modelo de concessão de telefonia para prestação de serviços públicos, com desconto de 75% de obrigação de investimento em estruturas públicas. De fato, a sigilosidade é procedimento cabível nos moldes da mediação postos, não havendo opacidade do procedimento pelo TCU, que também deu publicidade do acordo entabulado (proposta de solução consensual) por meio de acórdão em plenário, respeitando-se o princípio da publicidade. Já o desconto em investimentos na mudança do modelo contratual deverá ser objeto de auditagem pelos órgãos de controle.

As balizas mínimas são o cumprimento integral do interesse público relevante, eficiência do modelo (re)projetado e cumprimento da lei nas cláusulas do acordo elaborado, a não permitir questionamentos de benefícios financeiros ou em direção dos compromissários. O consenso tem por alvo a realização da faceta material da indisponibilidade do interesse público contratado, nada obstando a sua disponibilidade formal (meio, modo, tempo, etc.). Não se pode impor um processo heterocompositivo (adversarial) por sentença (por dever de razoabilidade), onde há lugar a autocomposição que chegará ao mesmo resultado (por acordo).

Defendo que há de se manter íntegra a teoria do consensualismo e seus meios de consecução (Ex vi Cristiana Fortini e César Pereira, 2024), em regime de liberdades com responsabilidades, como nos exemplos de sucesso do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG)  e Mesas Técnicas inauguradas pelos Tribunais de Contas brasileiros, a fim de subsidiar o destravamento de contratos administrativos, promoção contínua de criação de soluções céleres e eficazes, em exemplos de modelos de sucesso já experimentados pela boa gestão pública.

Marçal Justen Filho (“O consensualismo é consenso: em defesa da SECEXConsenso”) sai em defesa do consensualismo como modelo de gestão pública dissociada de fatores ideológicos, mas como forma de superar a inviabilidade da administração pública unilateral de construir soluções satisfatórias, considerando a impossibilidade de o controle estabelecer regras minuciosas e suficientes para o futuro, em especial em contratos de longo prazo e de objetos complexos (muitas vezes tecnológicos), devendo a iniciativa privada colaborar com a construção da modelagem da contratação pública. De fato, não há nova alternativa em modelo de rejeição ao consenso.

Concludentemente, o emprego dos métodos extrajudiciais de solução de conflitos na esfera estatal é uma realidade contemporânea, estando previstos de forma expressa no novo estatuto de licitações e contratos à disposição da administração pública (Lei federal nº 14.133/2021), contemplados especialmente nos casos submetidos à arbitragem, à conciliação, à mediação e ao comitê de resolução de disputas.

Os benefícios dessas novas técnicas se relacionam principalmente à redução de processos instaurados no âmbito do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas (excesso de litigiosidade), além de assegurar, de forma rápida, segura e eficaz, a melhor execução contratual e entrega do objeto à coletividade ou à administração.

Para o alcance dos resultados pretendidos, é necessária a mudança da concepção de administração pública tradicional, unilateral, imperativa e sancionatória, sem viés subjetivo ou ideológico para um novo modelo de administração pública dialógica, na busca da concretização da ideia de consensualidade e bilateralidade no trato das questões ajustadas entre a entidade contratante (seus órgãos de controle) e o particular contratado (pessoa física, pessoa jurídica ou consórcio de empresas) nos processos licitatórios.

Impõe-se uma assimilação madura da mutação material de conceitos ortodoxos e da ressignificação de vetustos institutos jurídicos, a exemplo da indisponibilidade do interesse público e da reserva de jurisdição, para que seja inaugurada uma nova cultura de resolução de litígios pelos próprios entes estatais envolvidos no problema, cabendo destacar que a celebração de um acordo ou compromisso com o particular contratado poderá melhor atender ao interesse público relevante a ser tutelado por dever legal, sempre que surgirem novas controvérsias que possam obstar o regular cumprimento do objeto contratado derivado de licitações e contratos administrativos de objetos complexos e de longo prazo, em que a gestão de riscos é ineficiente a prever a velocidade do mundo das coisas numa era contemporânea.

*Marcílio Barenco Corrêa de Mello é Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do Estado de Minas Gerais (2022-2024; 2024-2026). Pós-doutorando pela UFMG, Doutor e Mestre em Direito.

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