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Eis o X da questão

Elon Musk seria, na perspectiva das autoridades brasileiras, avesso a iniciativas destinadas a combater “fake news” e sanear a internet. Por isso, X foi bloqueado

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02-09-2024 às 09h:28

Phillipe Oliveira de Almeida*

Na madrugada de 31 de agosto de 2024, assistimos a mais uma reviravolta no cabo de guerra entre o empresário Elon Musk (dono da rede social X, antes conhecida como Twitter) e o ministro Alexandre de Moraes: o ministro determinou o bloqueio da plataforma no Brasil, depois que esta se recusou a constituir representante legal no País. Alexandre – ou seria Ale-andre, considerando-se a proibição do X? – tem, nos últimos anos, se engajado na investigação de “milícias digitais”, isto é, de grupos que se valem de redes sociais com o objetivo de disseminar posições “antidemocráticas” e impulsionar a expansão do neopopulismo.

Espaços virtuais como o Twitter, o Instagram, o Youtube e o Tiktok – que, à diferença da grande, mídia, não têm regulamentação, representando um grande sertão onde os lobos correm soltos – seriam campos férteis para aqueles que desejam disseminar a desinformação e mobilizar grupos protofascistas. Elon Musk – apoiador da campanha de Donald Trump nos EUA e simpático a manifestações de extrema direita pelo mundo – seria, na perspectiva das autoridades brasileiras, avesso a iniciativas destinadas a combater “fake news” e sanear a internet. Por isso, X se constituiria numa rede social particularmente propensa à difusão de discursos de ódio.

A suspensão das atividades do X dividiu opiniões: ataques ao ministro Alexandre de Moraes e ao presidente Lula (mas também críticas a Elon Musk) tomaram conta da internet. O Brasil é o terceiro maior consumidor de redes sociais em todo o mundo – 66,3% dos brasileiros têm perfis em plataformas, segundo dados da “We Are Social e da Meltwater”. Temos uma relação afetiva com as redes sociais: quem não se recorda, com nostalgia, das comunidades do Orkut, nas quais temas extremamente relevantes – como “Eu odeio acordar cedo”, “Adoro fazer tic tic na caneta” e “Tenho medo do Zé Gotinha” – eram debatidos?

No passado (em virtude da baixa mobilidade social e espacial), era possível que convivêssemos, até a velhice, com o mesmo restrito grupo de pessoas: morríamos na rua em que nascemos, nos casávamos com amigos de infância, nos aposentávamos no estabelecimento em que iniciamos nossa vida profissional... A rápida modernização pela qual o País passou nas últimas décadas tornou nossas conexões muito mais fluidas. Estamos em constante movimento, trocando de escola, de vizinhança, de emprego... Indivíduos com os quais convivemos intensamente ao longo de 4 ou 5 anos podem, do dia para a noite, “sumir na poeira das ruas”, “correndo pra pegar seu lugar no futuro”.

Daí que tenhamos nos apegado tanto a redes sociais: relações que, de outro modo, teriam morrido, seguem vivas – ou mortas-vivas – graças a espaços virtuais. Formo-me na faculdade, mas sigo “dialogando” (ou melhor, trocando memes) com colegas de turma; me mudo para outra cidade, mas continuo tendo notícias de meus antigos vizinhos através de seus perfis: “Maria se separou? João viajou com a amante para Porto de Galinhas? José perdeu o emprego?”

As redes sociais nos poupam da tarefa de nos despedir, de dar um desfecho apropriado a amores e amizades que se encerraram, de “aprender a dizer adeus” – criam a ilusão de que todos aqueles com os quais topamos ao longo da vida permanecem próximos, como fósseis presos em âmbar, em estado de suspensão. É esse, vale dizer, o pano de fundo do extraordinário filme independente “Vidas passadas”, dirigido e roteirizado pela brilhante cineasta sul-coreana Celine Song. Em um mundo marcado por relações frágeis, voláteis, as redes sociais oferecem uma falsa sensação de continuidade, um substitutivo para os vínculos comunitários que somos incapazes de manter.

Na contemporaneidade – como bem observou a filósofa Hannah Arendt –, a vida no seio de uma comunidade foi substituída pela experiência de pertencer à “massa”. Sentimo-nos isolados, solitários, mas encontramos algum conforto quando nos perdemos numa multidão de rostos anônimos. A “massa”, para Arendt, é “solidão organizada”. Ora, não seria essa uma definição perfeita para o Twitter? Não é à toa que, com o bloqueio do X, muitos pareçam estar de luto, como se houvessem sido brutalmente alijados do convívio familiar. Todavia, como um sábio disse certa feita: “ter muitos amigos nas redes sociais é como ter muito dinheiro no banco imobiliário”.

Depositamos, hoje, enorme confiança nessas plataformas virtuais – instituições privadas, cabe frisar! –, como se elas fossem capazes de substituir a rua e a praça, espaços nos quais, noutros tempos, nos aglutinávamos para fofocar, filosofar ou, até mesmo, CONSPIRAR. Por muitos séculos, a política (impossível de ser feita sem fofoca, filosofia e conspiração) pressupôs a rua e a praça, os encontros assíduos ou fortuitos no espaço público.

Hoje, no apogeu da modernidade líquida, tentamos, de modo precário, nos orientar politicamente através de redes sociais – receita para o desastre! Vemos com suspeita os grandes veículos de comunicação, e procuramos nos informar através de páginas do Facebook ou grupos do Whatsapp. Mas, como o escândalo da Cambridge Analytica, em 2018, revelou, as plataformas virtuais estão longe de ser “isentas”: em época de eleição, trabalham para condicionar quais mensagens chegarão a seus usuários, gestando genuínas câmaras de eco ideológicas – as chamadas “bolhas de filtro” –, que reforçam nos indivíduos convicções pré-estabelecidas, impedindo que tenham contato com argumentos divergentes. É por isso que nos deparamos com a proliferação de figuras tão caricatas quanto o “tiozão do zap”, que, graças às bolhas de filtro, é diuturnamente bombardeado com notícias feitas sob medida para validar teorias da conspiração por ele compradas antecipadamente.

A popularização do rádio, na década de 1930, exerceu enorme impacto sobre a política, em todo o Ocidente. Estadistas que, até então, pareciam distantes (um rosto num retrato em sépia...), falavam, agora, diretamente a seus eleitores, como se estivessem sentados na sala de jantar. Líderes populistas – é o caso de Vargas, no Brasil – se valeram fartamente do rádio, como forma de criar, junto à população, um inautêntico sentimento de proximidade. Muitos, ouvindo as mensagens do presidente noite após noite, passavam a considerá-lo, praticamente, um membro da família. Vários anos se passaram até que conseguíssemos criar anticorpos capazes de nos proteger frente ao “canto da sereia” da Voz do Brasil: tornamo-nos menos sensíveis aos artifícios retóricos do rádio.

Desconfio que, devido às radicais transformações da comunicação de massa perpetradas pela internet, estejamos vivendo situação semelhante à de nossos avós nos anos 30. Sucessivos escândalos de corrupção produziram, na sociedade, uma visceral desconfiança da política institucionalizada: políticos profissionais são retratados como inveterados mitômanos e cleptomaníacos. Nesse contexto – de crise de representatividade –, redes sociais dão-nos a ilusão de que é possível criar um vínculo direto (sem a mediação de partidos, assessores etc.) com lideranças, uma relação mais “honesta”, à distância de apenas um clique, entre eleitores e candidatos.

Posso twittar para o político que acompanho, ou postar um comentário em sua foto mais recente... e ele irá responder, de cara limpa. Posso acompanhar o cotidiano de meu candidato através do Instagram, saber que bares ele frequenta, quais produtos ele consome etc. Poucos se apercebem do quanto essa aparente espontaneidade é “produzida”, uma construção artificial que tem como objetivo fabricar “familiaridade”. Não é sem motivo que influenciadores digitais vêm conquistando, nos últimos anos, impacto cada vez maior nas disputas eleitorais – e que mesmo famílias tradicionais na política brasileira tem recorrido afoitamente aos “produtores de conteúdo para a internet”.

Diante de tal conjuntura, é urgente que elaboremos estratégias para coibir abusos nas redes sociais. A bandeira da “liberdade de expressão” não pode continuar a ser utilizada como justificativa para que grandes corporações poluam sistematicamente o debate público, recorrendo a “fazendas de trolls”, “clickbaits” etc.

Porém, vejo com reticências a crença de que a defesa da democracia na internet pode ser protagonizada por um ministro do STF. Como o jurista italiano Piero Calamandrei salientou, em um de seus escritos: “Quem se senta no alto do tribunal é ‘um juiz’, sem acréscimo de nome ou de títulos. É de muito mau gosto fazer aparecer sob a toga, na audiência, o professor Tito ou o comendador Caio, e seria falta de educação virar-se no decorrer da causa para o presidente ou para o Ministério Público tratando-os por Sr. José ou Sr. Caetano”. Para Calamandrei, o bom juiz fala apenas nos autos do processo, e teme ser reconhecido na rua. O magistrado deve aprender a se conter, evitando arvorar-se no papel de “tutor” da população.

O protagonismo midiático e político que alguns magistrados adquiriram, nos últimos anos, é um grave sintoma da erosão de nossas instituições democráticas. Xandão – ou Chandão, e aqui não me refiro à pessoa, mas à imagem criada no espírito da população brasileira – é, ele próprio, produto das redes sociais, símbolo forjado pela nossa perda de fé nas assembleias legislativas e nos palácios de governo. O grande Calamadrei teria uma síncope, se visse o quanto, graças às redes sociais, juízes conquistaram corações e mentes, expondo suas vidas públicas e privadas, dia após dia, para uma legião de “fãs”.

Em espaços como o Twitter, concedemos a figuras não-eleitas a autoridade para atuar como guardiões do interesse coletivo, sem nos atentarmos para o fato de que é precisamente essa fabricação de “heróis da nação” que abre caminho para o fascismo. Não será um Judiciário populista que nos salvará do populismo. No embate entre Alexandre de Moraes e Elon Musk, perde a democracia. Eis o X da questão.

*Phillipe Oliveira de Almeida é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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