Português (Brasil)

Atrás da Serra do Curral há um lago morto

Atrás da Serra do Curral há um lago morto

E quem matava a Serra do Curral, na época, era a empresa “Minerações Brasileiras Reunidas (MBR)”, hoje Vale S.A., projeto de “Águas Claras”, que deixou um buraco de 300 metros.

Compartilhe este conteúdo:

31-08-2024 às 17h:17

Direto da Redação

Quem se acha na Avenida Afonso Pena e vê lá no final dela a majestosa Serra do Curral, um dos cartões postais de Belo Horizonte, não imagina que, logo atrás dela, há um buraco de cerca de 300 metros, que há pelos menos duas décadas recebe água de um córrego e segundo a previsão, estará cheio em 2025.

Um lago natimorto. Porque está contaminado pela concentração de minério de ferro. O buraco feito atrás da serra seria em seu frontispício, não fosse a reação nossa, em reportagem publicada em meados da década de 1970, editada pelo jornalista e escritor Roberto Francis Drummond, intitulada “Sou gente-serra e eu hoje solto meu grito: estão me matando!”

E quem estava matando a Serra do Curral, na época, era a “Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), hoje Vale S.A, projeto de “Águas Claras”. Essa reportagem foi lida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro, e o inspirou a publicar o poema “Triste Horizonte”, e então a MBR desistiu do seu intento de destruir o frontispício da serra e enviou técnicos à Europa para buscar tecnologia. A escavação da área ficaria ao mesmo nível da Praça Rui Barbosa, mas conhecida como Praça da Estação.

Imagina o leitor do Diário de Minas: o buraco que está lá atrás e é um lago morto, seria do lado de cá. Isto é, quem está na Praça Sete e olha a serra lá no final da Avenida Afonso Pena veria uma abertura por onde os ventos soprariam como se fossem uma cachoeira.

E por falar em cachoeira, Deus queira que isso não aconteça, mas por mal dos nossos pecados, se a água morta desse lago morto de cerca de 300 metros de profundidade estourar a parede da serra, causará uma tragédia sem precedentes na capital mineira, com repercussão internacional. Como uma cachoeira, a água morta irá descer pela Avenida Afonso Pena abaixo.

Em pelo menos três momentos, estive à beira do lago natimorto e pude viver uma sensação estranha. A impressão é de que ele suga a gente, que puxar para dentro de si. Hoje a Vale nem permite a entrada para estranhos à empresa visitarem o lago. Aliás, não se pode nem transitar mais pelo cume da Serra do Curral como antigamente. Há vigilância de guardas.

O interessante é que, em se estando no alto da Avenida Afonso Pena e rumar para a esquerda na Avenida José do Patrocínio Pontes, o cidadão chega ao Parque das Mangabeiras. E se rumar para a direita na mesma avenida se chega ao Parque da Serra do Curral, onde logo na entrada o visitante lê numa placa de ferro o poema de Carlos Drummond de Andrade “Triste Horizonte”, publicado abaixo.

“Triste Horizonte”

“Por que não vais a Belo Horizonte?

a saudade cicia e continua, branda: Volta lá.

Tudo é belo e cantante na coleção de perfumes das avenidas que levam ao amor,

nos espelhos de luz e penumbra onde se projetam os puros jogos de viver.

Anda! Volta lá, volta já.

E eu respondo, carrancudo: Não.

Não voltarei para ver o que não merece ser visto,

o que merece ser esquecido,

se revogado não pode ser.

Não o passado cor de cores fantásticas,

Belo Horizonte sorrindo púber e núbil sensual sem malícia,

lugar de ler os clássicos e amar as artes novas,

lugar muito especial pela graça do clima e pelo gosto,

que não tem preço,

de falar mal do Governo no lendário Bar do Ponto.

Cidade aberta aos estudantes do mundo inteiro, inclusive Alagoas, “maravilha de milhares de brilhos vidrilhos” mariodeandrademente celebrada.

Não, Mário, Belo Horizonte não era uma tolice como as outras.

Era uma provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas.

Era um remanso, era um remanso para fugir às partes agitadas do Brasil,

sorrindo do Rio de Janeiro e de São Paulo: tão prafrentex, as duas!

e nós lá: macio-amesendados na calma e na verde brisa irônica…

Esquecer.

Quero esquecer é a brutal Belo Horizonte que se empavona sobre o corpo crucificado da primeira.

Quero não saber da traição de seus santos.

Eles a protegiam, agora protegem-se a si mesmos.

São José, no centro mesmo da cidade, explora estacionamento de automóveis.

São José dendroclasta não deixa de pé sequer um pé-de-pau onde amarrar o burrinho numa parada no caminho do Egito.

São José vai entrar feio no comércio de imóveis,

vendendo seus jardins reservados a Deus.

São Pedro instala supermercado.

Nossa Senhora das Dores,

amizade da gente na Floresta,

(vi crescer sua igreja à sombra do Padre Artur)

abre caderneta de poupança,

lojas de acessórios para carros,

papelaria,

aviário,

pães-de-queijo

 

Terão endoidecido esses meus santos e a dolorida mãe de Deus?

Ou foi em nome deles que pastores deixam de pastorear para faturar?

Não escutem a voz de Jeremias (e é o Senhor que fala por sua boca de vergasta):

“Eu vos introduzi numa terra fértil, e depois de lá entrardes a profanastes.

Ai dos pastores que perdem e despedaçam o rebanho da minha pastagem!

Eis que os visitarei para castigar a esperteza de seus desígnios”.

 

Fujo da ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor.

Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano.

De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fiéis.

Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de esperança nos homens pacificados – os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico.

Em vão tento a escalada.

Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar.

Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos,

proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro.

Esta serra tem dono.

Não mais a natureza a governa.

Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade.

Desiste ou leva bala.

Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo.

Jeremias me avisa: “Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões.

Vi os montes, e eis que tremiam.

E todos os outeiros estremeciam.

Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada”.

Sossega minha saudade.

Não me cicies outra vez o impróprio convite.

Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor.”

Compartilhe este conteúdo:

 

Synergyco

 

RBN