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O senhor Francisco Ornelas

À medida que progredia na eletrônica e o cinema de mudo já falava, sr. Ornelas construía amplificadores valvulados para sonorização das salas de cinema.

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28-02-2024 às 09h:20

Alberto Sena*

Os meninos jogam bolinha de gude no chão aguado pela chuva recente. Os meninos jogam finca na terra úmida. E vem lá o sr. Ornelas, passadas comedidas, os cabelos desgrenhados, um jeito “roliudiano” de ser adquirido certamente no convívio com a eletrônica e os transmissores de cinema.

Montes Claros começa a se mostrar como cidade metropolitana, mas ainda tem muito que crescer e se modificar para alcançar o ponto chegado hoje em dia.

O sr. Ornelas simplesmente espia os meninos. Os meninos jogam bolinha de gude. Os meninos jogam finca. Dois deles são os seus filhos Francisco, também Chico chamado, e Quinzim.

Muitas das vezes o sr. Ornelas só olha. Não diz nada. Desce a Rua Corrêa Machado e entra na Rua João Pinheiro a esquerda, onde ele e a família moram.

O sr. Ornelas e Waldyr Senna, meu irmão, têm uma relação boa de amizade. É que Waldyr já trabalha no O Jornal de Montes Claros e o sr. Ornelas é especialista em eletrônica.

Se o leitor ainda não desconfiou, estamos na Montes Claros da década de 1960.

Porque o sr. Ornelas trabalha com eletrônica, volta e meia, ele dá manutenção eletro-mecânica nas linotipos do jornal.

O tempo passou. No presente, o tempo do verbo virou passado porque o menino se tornara adulto, soube do quanto Francisco Lima de Ornelas Filho, nascido em Raposos (MG) e neto do Padre Ornelas, vigário de Santa Luzia, cidade da grande BH, era importante em matéria de eletrônica para Montes Claros.

Aliás, ele foi o precursor. Já havia construído os seus primeiros transmissores e por meio de trocas de experiências com outros aficionados pela novidade (eletrônica era novidade na década de 1960) no Brasil e no exterior.

À medida que progredia na eletrônica e o cinema de mudo já falava, sr. Ornelas construía amplificadores valvulados para sonorização das salas de cinema.

Ele era imprescindível para os donos de cinema de então, cines Coronel Ribeiro, São Luís, Ypiranga, Olinda e os que vieram depois, Fátima e Montes Claros.

Para o menino, sr. Ornelas era gênio. Era como o gênio da lâmpada ou “Professor Pardal” das revistinhas de Walt Disney.

Enquanto na casa dele jogávamos pingue-pongue numa mesa que era uma folha inteiriça de aglomerado de madeira, o sr. Ornelas dava uma espiadela só. A musicalidade da bolinha de pingue-pongue não o incomodava.

Não incomodava nem a mulher dele, dona Rita, com a qual a minha mãe, Elvira, se dava muito bem porque ambas eram religiosas e viviam trocando orações.

Minha mãe tinha o costume de se recolher ao oratório, num canto do quarto, pelo menos três vezes por dia. No quarto tinha-se a sensação do silêncio de igreja vazia.

O sr. Ornelas e dona Rita, ela vinda das bandas do Vale do Jequitinhonha, tiveram, pela ordem, os seguintes filhos: Neyde, Maria Rita, Francisco Ornelas, Rayldo e França. Dos cinco, quatro vivos.

Atualmente descendem do casal 15 netos e 15 bisnetos.

Para dar ao texto um cunho histórico, convém informar, na fase de novos cinemas em Montes Claros, o sr. Ornelas montou os de Juquinha Paculdino, Cine São Luís, Cine Ipyranga e Cine Montes Claros. Ele e sr. Juquinha tinham uma relação de amizade muito forte. A amizade se transformou em compadrio já que sr. Juquinha batizou Chico Ornelas, o filho, atual presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros.

O sr. Ornelas trabalhou também na montagem dos transmissores da rádio ZYD-7 e na montagem da antena desta, no Santo Expedito, à época Alto Severo.

Na ZYD-7, uma das suas paixões reveladas: ele trabalhou na manutenção dos transmissores e na mesa de estúdio até seus últimos dias.

Trabalhou para o dr. Mário Ribeiro nas montagens das salas de cinema dele em Montes Claros, Januária, São Francisco e Janaúba.

Tanto tempo depois, o menino ainda se recorda de que o sr. Ornelas vendera a casa onde morava, na Rua Corrêa Machado, 238, para Waldyr e teve de sair dela para ocupar a casa que ele construía nos fundos da nossa, com entrada pela rua João Pinheiro.

Evidentemente, contei com a laboriosa assessoria de Chico Ornelas, o filho, para dar a volta no parafuso do tempo a fim de escrevinhar este texto.

E é ele quem conta, o pai “trabalhou até a sua última risada”. E explicou: “Uma irmã e uma cunhada dele, que há muitos anos não iam a Montes Claros, foram passar uma temporada com ele; após o jantar, ficaram relembrando a infância e rindo de tudo”.

Depois, ele foi dormir.

Não acordou mais.

Isso foi no dia 13 de agosto de 1981. Dentre os seus hobbies, fotografia e sistemas de som eram os principais. Se alguém quisesse desafiá-lo bastava dar a ele um cofre com segredo perdido.

O sr. Ornelas abria.

Quarenta e um anos depois da morte dele, a família – filhos, netos e bisnetos – deram de suspeitar que o sr. Ornelas auxilia São Pedro na manutenção da porta eletrônica do céu.

Hoje, 28 de fevereiro de 2024, soube que a casa construída pelo sr. Ornelas, no fim da década de 1950, início da década de 1960, foi demolida recentemente. Vi a foto do espaço vazio. E por entre os tijolos foram encontrados os espectros de lembranças de um tempo bom.

*Autor do livro Retrato De Nós Mesmos, que pode ser enviado pelos correios onde houver um conterrâneo dos Montes Claros.

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