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O jogo da Amarelinha

Naqueles tempos, as crianças inventavam as próprias brincadeiras. Espaço não faltava para isso porque quase todas as casas de Montes Claros tinham quintais.

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25-02-2024 07h:47

Bento Batista*

Quando soube oficialmente da inexistência de “papai noel”, para mim não foi decepcionante porque já suspeitava. Um ano antes havia feito pequeno buraco no cobertor para apanhá-lo no flagra. Não consegui. Dormi. Ele deve ter se sujado todo nas cinzas da chaminé lá de casa, na Rua São Francisco, em Montes Claros. Mas o buraco ficou no cobertor.

Considero de grande importância dar às crianças fantasias. As fantasias, como os contos de fadas, estimulam a criatividade das crianças. Inda mais nessa fase de formação mental. O adulto criativo depende das fantasias assimiladas na infância.

Particularmente, sou do tempo do rádio. Havia jornal impresso em Montes Claros no final da década de 40, quando nasci, mas foi o rádio o grande veículo de comunicação – e é até hoje, acredito. Em toda casa deve haver um ou mais rádios.

Havia no rádio as histórias do “Tio Janjão”, com uma vinheta bastante chamativa, “Do tempo em que os bichos falavam”. E ficávamos pensando, “então os bichos falaram em algum tempo?” Ouvindo as histórias, a criançada imaginava as cenas visualizadas por meio dos ouvidos.

Naqueles tempos, as crianças inventavam as próprias brincadeiras. Espaço não faltava para isso porque quase todas as casas de Montes Claros tinham quintais. Era comum ficar com os dedões estropiados de tanto andar descalço porque os sapatos eram usados para sair a fim de visitar alguém, algum parente, ou ir à igreja.

Várias brincadeiras marcaram as crianças da nossa geração. O jogo da amarelinha, que chamávamos de “maré”. “O Jogo da Amarelinha” é também o título de um dos livros do escritor Julio Cortázar, nascido na Embaixada da Argentina, Bélgica, filho de argentinos.

O livro dele é um tanto intrincado, nem se compara com a simplicidade de “maré”. Primeiro riscávamos um desenho de quadrados no chão de terra batida, em forma de cruz, tendo ao final o que seria o céu e o inferno.

Com o auxílio de uma casca de banana iniciávamos a brincadeira. Um jogava a casca no primeiro quadrado e pisava no segundo em diante pulando numa perna só, como o Saci, e depois com as duas pernas. Quem acertasse tudo direitinho iria para o céu. Ou para o inferno, dependendo dos erros cometidos.

Era uma brincadeira saudável, como outras também interessantes, de alto conteúdo lúdico e psicomotor. Em muitos lugares crianças ainda devem brincar assim.

Na época, a gente não se dava conta disso, mas agora, em plena terceira infância, refletindo sobre as brincadeiras de então, percebo o quanto entrava em êxtase correndo em brincadeiras de “salvar bandeira” e outras.

Sabe-se, hoje, exercitar, andar, estimula a produção de endorfina. Andar tocando conscientemente os calcanhares no chão é um prazer. Por isso mesmo.

 “O Jogo da Amarelinha”, de Cortázar, nada tem a ver com a brincadeira de “maré”, mas uma coisa me levou à outra. Até mesmo para lembrar o argentino. Além desse livro, ele escreveu outros como “Histórias de Cronópios e de Famas”, mais intrincado ainda.

Mas dois contos de Cortázar me marcaram. Um, em rápidas pinceladas, como diria o genial pintor espanhol Salvador Dalí, é sobre um fio de cabelo. O fio entrou pelo crivo da pia de lavar rosto e foi descendo pela tubulação. O escritor descreveu a cena com tamanha realidade! Deu até para o leitor entrar pelo cano vendo o fio de cabelo descer rumo ao seu destino.

Outro conto dele é sobre um camarada vestindo pulôver no quarto. Ele se atrapalhou tanto com a vestimenta, que se desesperou e se foi rodopiando, rodopiando no meio do quarto e acabou se precipitando pela janela de alguns andares de altura.

Cortázar surgiu na literatura quase concomitantemente ao boom de escritores latino-americanos como Gabriel Garcia Márquez, colombiano; Manuel Puig, argentino; Eduardo Galeano, uruguaio; Roberto Drummond, Wander Piroli, Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior e Luiz Vilela, Carlos Herculano, que agora integra a Academia Mineira de Letras (AML).

Os escritores mineiros eu os acompanhei mais de perto. Três deles, de muito perto, Wander Piroli, Roberto Drummond e Carlos Herculano, com os quais trabalhei no jornal Estado de Minas. Os outros, com exceção de Murilo Rubião, frequentavam a nossa editoria, Editoria de Polícia, a mais premiada do jornal, com vários “prêmios Esso”, o mais importante da imprensa brasileira. Tenho o privilégio de possuir um, relativo a “direitos humanos”.

Como disse no início, acreditei em “papai noel” até o dia do anúncio oficial da inexistência dele. Mas, com o passar dos anos voltei a acreditar, diante do deplorável quadro da política brasileira. O Brasil foi tomado de assalto por bandidos e precisamos fazer alguma coisa. Ora, com efeito!

Vamos chamar “Os Músicos de Bremen”?

*Jornalista e escritor

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