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As duas Anália’s e a flatulência

As duas Anália’s e a flatulência

Era vizinha nossa, separada só por um muro, uma família recém-transferida da roça para a cidade. Era a mãe, viúva; um filho e duas filhas

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14-01-2024 às 08:18h.

Anes Otrebla*

“Maracangalha”, letra e música do baiano Dorival Caymmi’, foi lançada em 1957, de modo que até nos primeiros anos da década de 1960 era muito ouvida no rádio e até cantada exaustivamente em “grito de carnaval” nos clubes. Mas o detalhe da letra da música, a personagem Anália, é que chamava a atenção porque na cidade havia uma zona de “baixo meretrício”, a época, assim chamavam uma das zonas boêmias de Montes Claros, onde a “cafetona” era uma mulher chamada Anália.

Ocorre que quando a família morava na Rua Corrêa Machado, no trecho entre as ruas Dr. Veloso e João Pinheiro, havia na época o campo do clube de futebol União logo em frente. O campo era fechado por muro de fora a fora e como já se encontrava meio abandonado, os meninos fizeram aos pouquinhos um buraco em círculo no meio do muro. Era só passar pelo buraco e a pessoa estava no barranco do lado de dentro do campo. Ali a meninada se esbaldava o dia inteiro com bolas de meia, de borracha e de capota.

Era vizinha nossa, separada só por um muro, uma família recém-transferida da roça para a cidade. Era a mãe, viúva; um filho e duas filhas. O filho se chamava Tone e uma das filhas era Anália. O nome da outra se perdeu no tempo. Daquela data em diante, depois que a família se mudou para a casa vizinha, não se cantou mais a música de Dorival Caymmi porque senão Anália podia achar que estávamos falando dela.

É que em pouco tempo a viúva e as filhas dela encrencaram conosco. Tone ficava mais tempo na roça do que na cidade. E tudo que as vizinhas falavam tinha a ver com ele. “Quando Tone chegar, vamos falar com ele... Quando Tone chegar nós...” Era Tone pra lá e Tone pra cá. Na primeira chuva, as vizinhas tamparam o buraco no muro por onde escorria a água vinda de outros quintais. Resultado: o nosso quintal, que recebeu a água da chuva vinda de vizinhos, inundou, porque não havia como a enxurrada correr.

Claro, tivemos que desobstruir o buraco do muro para dar vazão à enxurrada. As vizinhas fizeram o maior escândalo. Disseram: “Pode deixar, quando Tone chegar, Tone vai dar um jeito nisto”. Mas Tone demorou, o período chuvoso passou e tudo ficou como sempre. Outros períodos vieram e não tivemos o mesmo problema com as vizinhas. Em compensação, elas fechavam a cara para nós sempre que nos víamos.

Tudo narrado até aqui foi para chegar a este ponto: numa noite, estávamos – minha mãe, irmãs e o irmão – sentados em cadeiras na calçada. Fazia calor tal e qual o que Montes Claros atualmente experimenta. Na porta da casa vizinha estavam Anália e o noivo dela. Os dois conversavam animadamente. E nós, também. Até um momento de grande desconcerto quando o noivo de Anália deixou escapar sem querer querendo uma flatulência e ela entrou correndo para dentro de casa, envergonhada. Enquanto ela entrava, o noivo, todo desconsertado também, levantou-se da cadeira e foi embora sem nem olhar para trás.

Passaram-se alguns instantes, Anália voltou. Olhou para um lado e para outro da rua à procura de ver o noivo. Na cabeça dela, supusemos, ele jamais iria embora, mesmo em se tratando de uma situação constrangedora com a ocorrida. Como não podia deixar de ser, nós acompanhamos a movimentação de Anália, até que ela resolveu, pé ante pé, atravessar a rua e se dirigir, sem mais nem menos, ao buraco no muro.

Foi quando percebemos, ela achava que o noivo se escondera dentro do campo. Ela se foi aproximando do buraco no muro e ao pôr a cabeça do lado de dentro soltou um ruído pela boca mais ou menos parecido com “buuuuuu...” Mas, quando Anália percebeu que o noivo ali não estava, ela retornou correndo para dentro de casa envergonhada em dobro.

Claro que fomos condescendentes com ela. Não rimos desbragadamente. Rimos entre os dentes, tapando a boca com as mãos.

Desde então, toda vez que escutamos “Maracangalha” nos recordamos de Anália – de uma e da outra – do noivo dela, do episódio da flatulência e do buraco do muro do campo do Clube União, e caímos na gargalhada. Mas sem desrespeitar os personagens, mais pela comicidade intrínseca ao acontecimento.

*Jornalista e escritor.
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