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No Caminho da Fé, rumo a Aparecida, a surpresa caiu do céu aos nossos pés

No Caminho da Fé, rumo a Aparecida, a surpresa caiu do céu aos nossos pés

Lembro-me bem de todas as vezes em que iniciamos o caminho. Mas das três vezes, uma delas marcou muito e foi a primeira. Era madrugada ainda. Águas da Prata (SP) dormia.

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28-05-2023 - 09h:00

Bento Batista*

Nós lá íamos, passo a passo, rumo ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, pelo Caminho da Fé. Ao todo, desde Tambaú (SP), são 400 quilômetros. Mas nós iniciamos a caminhada a partir de Águas da Prata (SP), 100 quilômetros adiante. Tínhamos pela frente então 300 quilômetros.

Subíamos e descíamos montanhas. A impressão era de que a gente ia ao céu e depois descia. Tem pessoas que gostam mais de descer do que de subir. Comigo ocorre o contrário. Gosto mais de subir, mas não me incomoda descer. A não ser quando o corpo está cansado e a descida exige mais das panturrilhas.

Lembro-me bem de todas as vezes que iniciamos o caminho. Mas das três vezes, uma delas marcou muito e foi a primeira. Era madrugada ainda. Águas da Prata dormia. Só se ouvia latido de cães e canto de galos. Era uma trilha muito estreita. Tínhamos que encontrar logo uma vara para servir de cajado e a primeira coisa que vimos foi uma vara de bambu. Serviu até o dia clarear.

Mas antes do sol nascer, no meio do escuro parecia haver uma luz a iluminar o nosso caminho. Tínhamos inteira visão de onde estávamos pondo os pés. Procuramos ver de onde vinha a luz, mas só víamos a escuridão. No entanto, a luz ali estava e iluminava o nosso caminho até que o sol radiante despontou atrás duma montanha.

Despedimo-nos do pedaço de bambu assim que encontramos duas varas de eucalipto. Cajado de eucalipto é bom porque é retilíneo. E aqui vai uma curiosidade: o eucalipto é originário da Austrália, mas se desenvolve melhor aqui do que lá. Existem mais de 700 espécies de eucalipto, mas poucas são usadas aqui para o fim de produzir carvão siderúrgico. Não só para carvão serve o eucalipto. A madeira é usada largamente na marcenaria e tem outros usos.

Considero mágicas as manhãs. Sinto-me parte integrante do universo quando estou andando bem cedinho, ao ponto de acordar os passarinhos. Numa vez, chegamos a tempo de lamber as gotas do sereno que nos lançavam o brilho do sol ao serem avistadas de longe.

Como dizíamos lá no início, nós lá íamos fincando o cajado de eucalipto no cascalho. Subimos uma montanha e paramos no topo para contemplarmos a paisagem. Iniciamos a descida e chegamos a uma parte do terreno plana, coberta de gramíneas. Eu ia à frente e debulhava os pensamentos.

De repente, quase aos meus pés caiu do céu uma rolinha marrom. Ela ficou se estrebuchando diante de mim e apressei para pegá-la com a mão. A rolinha parecia assustada. O coraçãozinho dela batia descompassado e vi nos olhos do passarinho aflição.

Foi algo inusitado. Não havia árvores por perto. Alguma coisa fez a rolinha cair lá de cima. Mas não ouvimos nenhum barulho. Intrigante isto. Podia ser que ela estivesse sendo atacada por um gavião, mas admitindo isto, teríamos ouvido algum ruído.

Fiquei com o passarinho na mão e acariciei-lhe a cabeça com o maior cuidado. Pedia-lhe para ficar calma. ‘Tudo vai passar, viu? Você vai ficar boa’, dizia. Fomos notando que a rolinha começou a se acalmar. Sabia disto porque o coraçãozinho dela foi desacelerando aos poucos e até senti que inflou as penas como se estivesse pronta para voar.

E estava. Foi eu abrir a mão e a rolinha voou. Foi um momento mágico! Ficamos pensando: se não estivéssemos passando por ali na hora, naquele lugar onde não havia ninguém, possivelmente a rolinha teria morrido.

Ao cair na nossa frente, a queda dela produziu um ruído chocho do papo no chão e ela estremecia toda. Lembrei das vezes em que, armado de estilingue, derrubava rolinhas. E quando elas caíam, ficavam como a da Serra da Mantiqueira estrebuchando na nossa frente.

Por mais que buscássemos explicação para esse evento até hoje não conseguimos compreender o significado daquilo. Foi uma coincidência? Coincidência existe?

Naquele momento, o mundo em convulsão, os homens matando uns aos outros nas guerras em várias partes do globo e nas ruas das grandes cidades, e nós tínhamos a sublime missão de salvar uma rolinha de morrer sozinha na imensidão e no isolamento da Serra da Mantiqueira. Foi Deus que quis assim!

*Jornalista e escritor

Imagem da Galeria Depois da travessia do Rio Paraíba do Sul sobre dormentes da linha de trem, um alívio
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