Português (Brasil)

Tudo flui; a mente pode conceber o fluxo em dois sentidos, para o nada ou para o absoluto

Tudo flui; a mente pode conceber o fluxo em dois sentidos, para o nada ou para o absoluto

Esta lei natural da fluidez, da mudança contínua, opõe-se à nossa mente racional, que aspira o imutável, a verdade, a permanência, a eternidade.

Compartilhe este conteúdo:

18-02-2023

09h:47

Sebastião Gusmão*

Heráclito (século 5 a.C.) postulou o fluir (panta rei: tudo flui) como o arché (princípio presente em todas as coisas) da filosofia pré-socrática. O universo consiste no contínuo fluxo do ser e não ser, do existir e não existir, da construção e desconstrução.

Este fluir é possibilitado pela interação matéria-energia, determinada pelo acaso e pela necessidade. Construção do complexo a partir do simples, e desconstrução do complexo para retorno ao simples. Duas forças opostas parecem determinar o referido fluxo. Uma força que possibilita a construção do complexo a partir do simples: em determinadas condições de temperatura e pressão, e com grande aporte de energia, podem surgir estruturas complexas com propriedades emergentes. Esta força construtiva, imanente ao próprio universo, é denominada de Conatus por Spinoza, de Vontade por Schopenhauer, e de Vontade de Potência por Nietzsche. Na filosofia idealista esta força tem origem transcendental, fora do universo. A força desconstrutiva é a segunda lei da termodinâmica (ou entropia), que desorganiza o complexo (a ordem), retornando ao simples (a desordem). E no universo nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma (Lavoisier). Tudo flui, tudo se move e é sujeito ao tempo, ao devir. Uma inevitável mudança arrasta tudo para um fim, especialmente a vida humana.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades”. (Camões)

Esta lei natural da fluidez, da mudança contínua, opõe-se à nossa mente racional, que aspira o imutável, a verdade, a permanência, a eternidade. A oposição entre mente racional em uma natureza irracional nos leva a interpretar como absurdo a passagem do ser ao nada, da construção à desconstrução, do nascer para morrer. A cultura, o esforço para compreender a realidade e dominar a natureza, é, em essência, uma defesa ao fluxo inexorável. Mas, apesar de toda a grandiosidade da cultura desenvolvida pela humanidade, temos que admitir com coragem e certa decepção que, embora sejamos a consciência do universo, nosso lugar nele é insignificante. Somos parte da natureza e não podemos negar ou escapar do fluxo, da transitoriedade. O imenso universo (ou os muitos universos, segundo a teoria dos universos paralelos) flui há 14 bilhões de anos e nós (Homo sapiens) estamos neste pequeno planeta há apenas 200 mil anos. Ou seja, o universo existe muito antes de nós e, após nossa extinção (como ocorreu com várias espécies de hominídios nossos ancestrais), ele continuará seu fluxo inexorável.

Na sabedoria trágica da mitologia grega Sileno afirma ao rei Midas que o melhor para o homem seria não ter nascido, não ser; e já que nasceu, o melhor é logo morrer, pois, como afirma o mito de Sísifo, a vida consiste em levar indefinidamente uma pedra montanha acima e que descerá rolando a seguir; ou seja, a existência é sem sentido, absurda, finita e sofredora. Sofremos a dor da falta de sentido e a falta de sentido da dor.

E o Eclesiastes, ainda mais pessimista, afirma que “tudo é vaidade e terminará em desilusão e cinzas”; e nada vale a pena, pois até “na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta o conhecimento aumenta a tristeza”. E a dúvida está lançada: “Ser ou não ser, eis a questão” (Hamlet; Shakespeare), existir ou não existir? Camus, no Mito de Sísifo, responde que, apesar do absurdo do fluir para o nada, a vida vale a pena e deve ser vivida intensamente, pois “a própria luta em direção às alturas é suficiente para preencher o coração de um homem; é preciso imaginar Sísifo feliz”.

Nossa mente pode conceber o fluxo em dois sentidos opostos: fluir para o nada, como indicam nossos sentidos (materialismo); ou para o absoluto, como sugerem nosso desejo e nossa razão (idealismo). Na busca da essência da realidade, do princípio ordenador do cosmos, o pensamento filosófico subsequente fluiu em duas direções opostas: o ideal (idealismo) e o real (realismo, materialismo). Para o primeiro, o ser é permanente no mundo imutável das ideias, da razão, da verdade; para o segundo, está em constante mudança no mundo dos sentidos, dos instintos, da ausência de verdades.

A filosofia de Platão (e toda filosofia idealista subsequente) foi uma reação ao fluxo de Heráclito, uma procura pelo absoluto, pela verdade, que são impossíveis em uma natureza em movimento; ou seja, uma resposta metafísica para dar sentido à existência, ao fluir. A impossibilidade de associar um verdadeiro saber a uma realidade em permanente mudança fez com que a verdade fosse colocada por Platão no mundo das ideias, das formas perfeitas, da ausência de mudança. Para ele o fluxo seria apenas aparente e regido por um mundo imutável, de verdades absolutas, transcendente ao universo (mundo das formas ideais ou universais); este mundo seria a verdadeira realidade das formas perfeitas, além dos nossos sentidos. E, no mesmo sentido, o cristianismo (“um platonismo para o povo”, segundo Nietzsche) coloca o fluxo regido por um ser supremo, transcendental, não sujeito ao fluxo e responsável pelo fluir do universo (Deus). Com Santo Agostinho, as formas de Platão tornaram-se ideias na mente de Deus.

Só temos duas opções: ou acreditamos em um Deus que nos salva, ou aceitamos o fluxo em direção ao nada, ou seja, desistimos da salvação. Mas em filosofia não existe consenso sobre quase nada, e muito menos sobre Deus. Para o pensamento filosófico grego, o divino era uma abstração figurada na ordem cósmica (a totalidade do universo), o primeiro motor que colocou o cosmos em movimento (Aristóteles). Com o cristianismo ocorre uma ruptura e o divino é personificado: “O verbo se fez carne”. Na Suma Teológica, São Tomás de Aquino tentou incorporar o Deus de Aristoteles ao Deus cristão, e postulou cinco “provas” de sua existência. Guilherme de Ockham questionou estas provas afirmando que Deus é incognoscível, pois transcende a razão humana e só pode ser atingido por meio da fé. Da mesma forma, Kant afirmou ser impossível qualquer conhecimento sobre Deus. Para Freud, Deus é uma ilusão infantil. E, para Nietzsche, é preciso decretar a morte de Deus para libertar nosso pensamento. Entretanto, é difícil admitir a perda do absoluto, o fluir para o nada.

A filosofia propõe nos salvar do medo da morte, a aceitar o fluxo em direção ao não ser, ao nada; a religião garante nos salvar da morte, do fluxo em direção ao nada.

Seja qual for a opção, estamos condenados, mais do que a morrer, a seguir o fluxo da natureza, a viver como senhores de nosso destino em uma existência trágica, permeada pela dor e pela solidão em um universo silencioso. Nos angustia a estranheza de ser, e pior a estranheza de parar de ser, o nada, a ausência de verdade, o fluxo imprevisível. A fluidez de Heráclito foi intensificada no atual mundo líquido de Zygmunt Bauman que nos submerge no turbulento rio da existência.

Se somos condenados a fluir, a viver, como procurar uma vida boa, que valha a pena ser vivida? A transcendência e a fé seriam as respostas.

Possuímos a alternativa da transcendência (ultrapassar os limites) sobre o mundo e sobre nós mesmos, pois temos capacidade de romper os limites, superar e violar os interditos, de ir além daquilo que é dado, de transcender. A grandeza, a vida autêntica, consiste na decisão de ser mais forte que a condição humana, de se revoltar, de não ser indiferente, de ir além do que foi estabelecido, desafiando nosso destino. O que nosso aparelho cerebral consegue captar é o que podemos apreender. Muito mais pode existir para além do que podemos conhecer, e para o qual somos naturalmente ignorantes.

Afinal, “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” (Hamlet; Shakespeare). E a única opção para saber de nossas possibilidades “entre o céu e a terra” é continuar a expandir os limites de nosso pensamento, transcendendo, sonhando.

Nossa vontade de transcendência, nossa fé na existência, permitiu a caminhada das savanas africanas até o espaço sideral, na saga de conquistar o que existe entre o céu e a terra e que nossa pouca filosofia ainda não conhece.

Humanos, diferentemente dos animais (que vivem apenas no mundo real), vivem no mundo real e no mundo da ficção (o mundo das histórias que inventamos). Neste segundo mundo podemos prescindir da lógica e das evidências e criar histórias que formam toda nossa cultura, inclusive os conceitos filosóficos e as leis (modelos) científicas. Estes conceitos e leis são apenas constructos de nossa mente para compreender a natureza.

As histórias que inventamos podem ser transformadas em artigos de fé (adesão àquilo que se considera verdadeiro). Afinal não existe uma incompatibilidade entre razão e fé, entre verdade e fé. A própria verdade científica (provisória) e as verdades que orientam nossas vidas são uma questão de fé. A base da existência humana é a metáfora (equivalência figurada), é a crença na linguagem, nosso primeiro e maior artigo de fé. Somos seres virtuais desde o início da cultura no paleolítico, muito antes da realidade virtual das redes de computadores. O humano é uma realidade articulada com uma virtualidade. Temos que aceitar a insolúvel contradição desta realidade irracional (a natureza) com nossa mente racional (virtualidade). Nosso cérebro evoluiu para integrar a realidade e a ilusão, para viver no mundo real e no mundo da ficção, tornando possível suportar a existência. A arte, a filosofia e a religião existem para que a realidade não nos esmague, pois não suportamos ver a vida de frente. Somos movidos não pela verdade (que não existe ou não nos é acessível), mas pela fé, pela ilusão, pelos sonhos. “Nós somos esta matéria de que se fabricam os sonhos, e nossas vidas pequenas têm por acabamento o sono” (A tempestade; Shakespeare). Necessitamos da ilusão e devemos apostar nas ilusões e desejos que intensificam nossa vontade de potência, de viver.

Em um mundo sem verdades, ou no qual a única verdade é que tudo flui, temos certeza que vamos fluir, morrer. Donde se conclui que o valor supremo são os momentos da existência que devemos viver na sua totalidade, sem subtrair o sofrimento. Em vez de se angustiar com o sofrimento e a finitude, devemos viver plena e intensamente. São os prazeres simples das relações com as pessoas e o meio no qual vivemos que dão algum sentido à existência e tornam a vida um bem precioso. Somos afortunados por ser atores livres, sem roteiro estabelecido, do drama da vida no palco do universo, apesar de não sabermos qual o objetivo da peça com representação única e finita. O objetivo pode ser a própria representação, a existência, a travessia da vida, o fluir.

Somos nossa própria luz, um projeto nunca acabado, tendo sempre que nos construir, de ser o escultor de nós mesmos. Portanto, não existe um caminho comum a todos, pois o caminho se faz ao caminhar, no devir, no fluir. Este caminho, construído na realidade e na ficção, seria o próprio sentido da vida. E a sabedoria consiste em fazer da consciência trágica o início de uma transcendência para fluir com fé, lamentando menos o passado, esperando menos do futuro e entregando-se ao aqui e agora para viver a eternidade no momento

Dr Sebastião Gusmão, médico neurocirurgião renomado, professor, pesquisador e filósofo; professor da Universidade Federal de Medicina de Minas Gerais, titular fa faculdade de Neuroligia e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, com 13 livros lançados e diversos artigos; referência internacional em neurocirurgia.

 

Compartilhe este conteúdo:

 

Synergyco

 

RBN