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Bicalho parecia algum personagem fugidio de um livro de Victor-Marie Hugo

Bicalho parecia algum personagem fugidio de um livro de Victor-Marie Hugo

Ele era um personagem importante da cidade histórica de Grão Mogol, e tinha memória tão boa, aos 83 anos de idade, que costumavam compará-la com a de elefante.

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05-02-2023

12h:09

Bento Batista*

Ele nos remetia à lembrança de Quasimodo, personagem do livro Notre-Dame de Paris, do principal representante do Romantismo literário francês, Victor-Marie Hugo (1802-1885).

Ou senão, ele lembrava personagem fugidio do surrealismo do colombiano Gabriel Garcia Marques, no livro Cem Anos de Solidão, no qual o Prêmio Nobel de Literatura mergulha fundo no universo da imaginária Macondo.

Esse cidadão seria facilmente confundido como alguém da gênese da aldeia tecida e bordada, com intrincado esmero, por Garcia Marques.

“Essa figura impoluta”, expressão usual do “bon vivant” Fernando Gontijo, nos seus melhores anos, em Montes Claros, no Norte de Minas, o personagem indigitado possuía memória comparável à de elefante. Só faltava lembrar a árvore genealógica dos interlocutores.

O que ele tinha por fora escondia a beleza interior, o diamante verdadeiro, cobiçado por garimpeiros e encontrado no garimpo do intelecto.

Ele era pequeno. E como toda gente pequena, era homem esperto, talvez porque respirasse camada telúrica de ar mais baixa. Ágil, aos 83 anos de idade.

A silhueta dele, a maneira de ser, o fato de ele trabalhar diariamente na rua, negócio próprio, tudo nele e dele lembrava personagem de algum romance da literatura universal. Um jagunço de livros como Os Sertões, de Euclides da Cunha; ou Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa.

A fama dele corria por toda região do Norte de Minas. Ele era conhecido da intelectualidade montes-clarina. As pessoas o tinham como “verdadeira enciclopédia”. Com memória privilegiada, nos escaninhos dela, ele guardava boa parte da história da região, de acontecimentos, de casos relacionados com o povo e os tropeiros de então.

Quando Bento conheceu pessoalmente o personagem, tinha ciência da sapiência dele e o amigo Lúcio Bemquerer o avisou que ia dar nele “um susto”, enquanto hirto, ele se mantinha sentado no batente daquela casa secular onde fica a loja dele de secos e molhados, mais molhados do que secos.

De cabeça baixa e entre as pernas, ele tinha um livro aberto e parecia absorto na leitura. Se o telhado desabasse naquele momento, era capaz de ele se manter naquela posição, e lendo.

Aproximaram dele e ele nem percebeu. Lúcio entrou de supetão porta adentro e foi então que ele se levantou num salto para ver quem ali entrara apressadamente. Ao perceber de quem se tratava a fisionomia dele se abriu num largo sorriso. E, então, abraçou apertado o amigo.

Lúcio apresentou Bento a Bicalho. Logo os dois entabularam conversa animada por alguns instantes. Pelo menos naquele momento, ali na bela, poética e ao mesmo tempo intrincada Rua Direita, Cristiano Relo batizada, em Grão Mogol, ele parecia feliz da vida.

A Rua Cristiano Relo é fechada ao trânsito de carros. As pessoas se sentam à porta dos bares ou transitam livremente, como os belo-horizontinos vivem na Savassi; como os montes-clarinos andam pela Rua Simeão Ribeiro; como os curitibanos se divertem no Batel; como os paulistas curtem a Rua Vieira Souto e os ingleses se refestelam no Soho.

Os casarões coloniais da Rua Cristiano Relo têm portas e janelas coloridas. E em cada porta e em cada janela há marcas indeléveis, que só a memória privilegiada desse pequeno grande homem guarda.

Ele deixou o livro de lado, e a boca pequena, confidenciou algo ao Lúcio. Pouco depois, Bicalho olhou na direção de Bento com os olhos miúdos, duas testemunhas oculares de acontecimentos históricos de Grão Mogol – ex-Comarca de várias cidades circunvizinhas, a qual pertenceu Montes Claros – e disparou:

-Você é nascido onde?

-Montes Claros – Bento respondeu.

-De qual família?

-Sena Batista – Bento disse.

-Então, você é irmão de Waldyr?!

Ele perguntou e ato contínuo deu nele um abraço. As pupilas dos olhos de Bento viram Antônio Pádua Bicalho assim, conforme descrito aqui, figura encantada, que Grão Mogol venera.

Em 2020, ele morreu com mais de 90 anos.

Outros importantes personagens o lugar possui como Geraldo Ramos Fróis, botânico autodidata. Mas, é preciso dispor de mais tempo, e com mais vagar, extrair do garimpo intelectual dessa gente os diamantes carreados por aluvião da existência humana; da vida benfazeja, às vezes sofrida, mas também feita de momentos felizes, inesquecíveis. 

Imagem da Galeria Esta é a Rua Direita, em Grão Mogol, porque fica à direita da igreja de Santo Antônio
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