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Um vulto visto à distância se esgueirava pelos arbustos e barranco, em meio à névoa

Um vulto visto à distância se esgueirava pelos arbustos e barranco, em meio à névoa

Foi na região de Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e o Sol nem havia despontado, e o vulto se foi aproximando e então se pôde distinguir, era uma menina.

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26-01-2023

13h:05

Sílvio P. Oliveira*

O vulto se esgueirou pelos arbustos, subiu o barranco da rua em meio à névoa da manhã nascente. A luz do Sol batia em cheio nos olhos e não dava para identificar que vulto era aquele.

O vulto parou debaixo da marquise da mercearia, justamente o ponto onde se devia ficar esperando os companheiros em trabalho de missão de paz.

O relógio do Sol marcava um pouco antes das 7h. Algumas dezenas de passos depois, ele aproximou da mercearia onde pôde identificar o vulto.

Era uma criança.

- Bom dia, disse a criança sorrindo, os olhos iluminados.

- Bom dia, respondeu ele.

Sem preâmbulo algum, ela, uma menina, contou: “Estava dormindo sono gostoso e o pai me acordou para que viesse comprar pão”.

A criança olhou para a porta da mercearia ainda fechada e se queixou de estar demorando a abrir.

Era manhã de domingo e talvez a mercearia não abrisse mesmo. Ou abrisse mais tarde, depois que o dono curtisse mais algumas horas de sono.

- Meu pai nunca sorri. Aliás, eu só vi meu pai sorrir duas vezes – contou a menina.

- Por que seu pai não gosta de sorrir? – Perguntou ele.

- Não sei. Meu pai mora lá em Pavão – disse a menina.

- Você não contou ainda há pouco que o seu pai havia mandado você comprar pão, como é que ele agora   está em Pavão? – disse achando que a menina estivesse inventando história.

- Esse que me mandou comprar pão não é meu pai, mas meu padrasto – disse a menina.

Ela chamava o padrasto de pai porque o pai verdadeiro estava longe, no Vale do Jequitinhonha. Separara da mãe dela e de uma hora para outra foi para Pavão só com passagem de ida.

Os ponteiros do relógio cumpriam a sina de marcar os minutos. O Sol se elevava e nada de aparecer alguém para abrir as portas da mercearia.

Ele esperava os companheiros e se perguntava se seria ali mesmo o ponto de encontro.

Enquanto ninguém aparecia, continuou a conversar com a menina. Ela disse que se sentia sozinha, embora morasse com a mãe e o padrasto.

Se dependesse da vontade dela gostaria de viver com a mãe e o pai, juntos, mas ela sabia que a essa altura da vida seria impossível.

O nome da menina era Tarsila. Ela pronunciava o nome com certa entonação que denunciava o seu agrado de ter sido batizada Tarsila.

Disse que o que mais gostava era de rir. Contou que um dia riu tanto, nas brincadeiras com os vizinhos, que sentiu dor na barriga.

- Nesse ponto eu sou muito diferente do meu pai.

Gosto de rir e meu pai, não, ele nunca ri. Não sei por quê.

- Deve haver um motivo – ele disse.

A menina apontou com o dedo uma casa longe, azul, com uma caixa d’água sobre a laje e disse que morava lá. E devia ser mesmo, porque logo apareceu na porta dos fundos uma mulher e depois um jovem. A mulher era a mãe de Tarsila e o menino irmão dela.

Certamente, eles tinham o costume de vigiar a menina de longe. E com toda razão, pois era cedo, o movimento de gente ainda não havia começado. Uma menina como Tarsila podia correr risco, ali, sozinha.

Na porta da casa de Tarsila dois pontinhos, um azul e preto e o outro preto e marrom se destacavam. Mesmo ao longe transmitiam a sensação de que estavam ocupados com a segurança da menina.

Ou nem tanto porque, se estivessem de fato não teriam mandado uma menina tão pequena sair de casa àquela hora do domingo, quando não se encontrava viv’alma nas ruas.

-Você frequenta alguma igreja? – ele perguntou.

- Frequento, sim senhor. Nós frequentamos aquela igreja ali – e apontou com o dedo uma distante.

O Sol subiu.

Ninguém apareceu para abrir a mercearia.

Os companheiros dele chegaram. E ele foi embora com a turma a fim de cumprir missão de paz.

Andou uma quadra e olhou para trás. Pôde ver a menina indo na direção da casa dela.

Ele acompanhou o vulto de Tarsila até se perder na distância.  

*Leitor do DM.

Imagem da Galeria A menina apareceu em meio a névoa e com ela se pôde ter um diálogo interessante
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