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Hélio Garcia foi o nome encontrado por um capixaba para sobreviver à repressão

Hélio Garcia foi o nome encontrado por um capixaba para sobreviver à repressão

Preso em Belo Horizonte, em 1971, depois de ter voltado da China, José de Almeida, liberado do DOPS, foi para Cachoeira do Itapemirim, e assumiu a nova identidade

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22-01-2023

08h:00

Rufino Fialho Filho*

Trinta anos depois, em fevereiro de 2001, no dia 14 de fevereiro, no gabinete do vice-governador, no BDMG, ao lado de do jornalista e escritor Luís Carlos Eiras, que acessava a internet, trabalhava a montagem da página do vice, o celular toca.

Desenrolou-se a partir daí uma conversa que me deixou aturdido, por um bom tempo, sem um entendimento perfeito dos fatos e da história vivida. A recuperação dos dados da memória foi lenta.

- Meu camarada, você sabe quem fala? É o Hélio Garcia.

A voz parecia com a do Guinaldo Nikolaievsk. Voz idêntica.  Por que se chamar “Hélio Garcia”?

- É o Hélio Ramirez Garcia. Hoje, este é o meu nome. Na época, em 1971, eu era o José de Almeida Lima e você me salvou a vida.

- Talvez, você não se lembra, mas você me disse uma frase que eu jamais esqueci e que me salvou a vida.

- “Inventa uma história”, foi o que você disse, “Inventa uma história... e você escapa, inventa uma história... e você se salva, inventa uma história... engane os caras e desaparece”.

- Eu inventei uma história, então. Sai da prisão e agora depois do 6o. nome, depois da sexta identidade, depois que o reverendo Weik afirmou que José de Almeida Lima está descartado, desaparecido, de ser mais do que um morto vivo, descartado foi a expressão dele, decidi voltar a Minas Gerais. Com a garantia dada pelo reverendo de que não correria mais nenhum risco, decidi voltar e escrevo, hoje, a pedido do meu advogado, em um processo de reparação, um texto sobre aquele tempo e o que aconteceu comigo. Ele precisa do seu testemunho para o processo.

- Eu estava naquele IPM, Inquérito Policial Militar, de 1966, que pegou o pessoal que voltou da China.

-  O Marcelão (*) quase acaba comigo e ele que gostava da fama de que com ele todo mundo abria, eu o enganei. Ele me soltou... Marcelão me maltratou um pouquinho, eu aguentei, não sei como. Sobrevivi e fiz valer a minha identidade da época, José de Almeida Lima.

- Quando cheguei na cela 1, no DOPS, estava todo quebrado, mal levantava a cabeça, muito quebrado. Ali, no chão, deitado, foi que tivemos a nossa conversa e você insistia: “Invente uma história”.

- Isto foi em 1971 e na cela 1 estavam o Jésus, Marco Aurélio, Osvaldo e Milton. Cinco companheiros de cinco organizações diferentes. Cheguei na cela 1 e disse para você, meu bom camarada, estou preso com um nome frio. Isto já não mais aguentando, desesperado, querendo entregar os pontos e você me disse: Zé, inventa um cara, inventa uma história.

- Minha cabeça funcionou a mil e eu me salvei, como eles mataram todos os meus companheiros, eu caí nesta clandestinidade que já dura 30 anos. Sou como aquele japonês sobrevivente da segunda guerra numa ilha deserta.

- Em 1971 sai de Belo Horizonte e de Minas para nunca mais voltar por estas bandas, para nunca mais voltar. Isto é, alguns anos atrás tive que chegar até Minas, foi tudo muito rápido, entrei e sai correndo.

- Fui para São Paulo e em 1973, já no final do Araguaia vim para o Espírito Santo, cheguei em Colatina, em 1975, com todo uma documentação montada em nome de Hélio Ramirez Garcia.

- Como Hélio Garcia, eu fui bancário, estudante de economia, dono de um boteco. Tenho três filhos, um homem e duas moças. O meu filho, hoje com 30 anos não quis estudar e é um craque em informática, as minhas filhas estudaram, uma fez Direito e a outra Economia.

- Amigo, liguei para avisá-lo que voltarei a me chamar José de Almeida Lima, uma exigência dos meus filhos. Confesso que, muitas vezes, agradeci ao doutor Hélio por ter me emprestado o seu nome.

(*) Marcelo Paixão Araújo, o Marcelão, está na lista de torturadores.

*Rufino Fialho Filho, jornalista e colunista do Diário de Minas.

Imagem da Galeria Não fosse o uso do nome "Hélio Garcia", talvez o personagem estivesse em palpos de aranha
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