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Democracia ultrajada; parecia que o ovo da serpente fascista iria eclodir e liberar o veneno fatal

Democracia ultrajada; parecia que o ovo da serpente fascista iria eclodir e liberar o veneno fatal

O regime democrático apresenta três características fundamentais: criação e conservação de direitos; resolução dos conflitos por meio do diálogo; e a soberania é popular.

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17-01-2023

09h:22

Sebastião Gusmão*

No dia 8 de janeiro nossa democracia foi ultrajada quando assistimos ao grotesco espetáculo de um bando de vândalos, clamando palavras de ódio, depredar as casas dos Três Poderes em Brasília. Parecia que o ovo da serpente fascista iria eclodir liberando o veneno fatal para a democracia brasileira.

Brutus, na tragédia Júlio César, de Shakespeare, ao ver a frágil República Romana ameaçada por César, exorta: “Consideremo-lo ovo de serpente que, chocado, por sua natureza, se tornará nocivo. Assim, matemo-lo, enquanto está na casca”. Em 1977, Ingmar Bergman usou a mesma metáfora em seu magnífico filme O Ovo da Serpente (ambientado na Berlim de 1923, durante a República de Weimar) para realizar uma profunda reflexão sobre as origens do nazismo. Como demonstram a peça teatral de Shakespeare e o filme de Bergman, a história está repleta de períodos em que o ódio obscurece a razão, levando um povo a compactuar com regimes totalitários.

O Fascismo Eterno é o título da conferência proferida por Umberto Eco (1932-2016; um dos maiores intelectuais de nosso tempo), na Universidade de Columbia, em 25 de abril de 1995, numa celebração da liberação da Europa. Continua assustadoramente atual e de extrema importância para a compreensão da política e dos totalitarismos que ocorrem através do mundo. Embora se apresente sob várias formas e não tenha uma base filosófica, o fascismo define-se historicamente pelo nacionalismo e pelo autoritarismo. E os “patriotas” clamam por “pátria acima de tudo” e intervenção militar. Retornar ao regime militar seria transformar o passado em coveiro do presente, ignorando a história. Totalitarismo significa perda da liberdade e, consequentemente, da dignidade humana. Esta dignidade está assentada em nossa mente livre, geradora de conhecimento, para determinar nosso destino e procurar desvendar o universo.

Humanos, diferentemente dos animais (que vivem apenas no mundo real), vivem no mundo real e no mundo da ficção (o mundo das histórias que inventamos). Neste segundo mundo podemos prescindir da lógica e das evidências e criar boas ou más histórias, que moldam as ideias e ideologias que norteiam a civilização. A democracia é uma das boas ideias construída pelo homem, pois adequa-se melhor à nossa mente que anseia por liberdade.

Por se tratar de uma ideia, de um conceito, é difícil uma definição precisa de democracia. Mas pode-se dizer que ela apresenta três características fundamentais: criação e conservação de direitos; resolução dos conflitos por meio do diálogo; e a soberania é popular. Assim ela se opõe frontalmente aos anseios dos vândalos nacionais, que clamam por totalitarismo, resolução de conflitos pela força (golpe de Estado) e desrespeito à soberania popular definida nas últimas eleições. Não existe paraíso em ditaduras de direita ou de esquerda. A democracia não garante o paraíso na terra, mas impede que o inferno se instale. Ela é o único sistema político que, apesar de suas falhas estruturais, torna possível a liberdade dentro de nossa limitada condição humana.

Apesar de estarmos numa democracia formal, vivemos tempos fascistas, de exclusão do Outro. O diálogo parece possível apenas entre iguais. Aquele que não comunga as mesmas ideias torna-se um inimigo que necessita ser eliminado. Nossa ignorância, muitas vezes, não nos permite reconhecer nossos preconceitos e

intolerâncias, o réptil dentro de nós que está tentando romper a casca do ovo fascista.

Em nossa Era da Informação, a difusão infinita de conteúdos manipulados, associada à falta de reflexão, leva à disseminação do obscurantismo, colocando em risco a democracia. A dinâmica dos algoritmos das redes sociais coloca em contato apenas

aqueles que se afinam entre si, formando seitas de servos voluntários de um só pensamento, de uma só verdade, ou seja, constituindo-se em grupos de ignorância. Esta dinâmica criou o grupo de vândalos fascistas que violaram as casas que simbolizam nossa democracia: Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Eles depredaram as suas próprias casas, as casas do povo brasileiro. Os depredadores dos símbolos do estado democrático de direito (sedes do executivo, do legislativo e do judiciário) não fazem parte do campo democrático da direita, do liberalismo ou do conservadorismo. São antidemocratas, fascistas, que pregam golpe de Estado.

Como admoesta Boétie, em Servidão Voluntária, tanto a liberdade quanto a servidão voluntária fazem parte de nossa natureza. O hábito de pertencer ao rebanho do tirano em um regime totalitário parece mais seguro do que ser responsável pelo próprio destino e nos poupa da angústia de pensar, nos condenando a ser sempre os mesmos.

Assim, a luta pela liberdade é tarefa sem fim, pois o fascismo é eterno, e o preço da liberdade (democracia) é a eterna vigilância. O ovo da serpente está sendo incubado pelo analfabetismo funcional, pela intolerância e pelo fanatismo para gerar a serpente do totalitarismo com seu veneno mortal para a democracia. Eliminemos, enquanto ainda é tempo, o ovo da serpente fascista pois, se chocado, será nocivo para nossa democracia

* Médico neurocirurgião renomado filósofo, professor titular da faculdade de Neurologia da UFMG, com 13 livros lançados e diversos artigos publicados, ex-presidente da SBN - Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, colunista do Diário de Minas.

Imagem da Galeria O artigo do Dr. Sebastião mostra o quando a Democracia foi ultrajada no fatídico 8 de janeiro
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