O homem certamente nunca tivera a oportunidade de ver o rosto da mulher
Os circunstantes olharam o casal indo embora e ficaram impressionados com tamanha euforia, como quem tinha acabado de ganhar na loteria. Os dois pareciam felizes.
13-01-2023
10h:09
Adriano G.L. Mendes*
As nuvens prenunciavam chuva. A cor da hora era aquela do lusco-fusco. No abrigo, se é que se podia chamar aquilo de abrigo, algumas pessoas esperavam o ônibus.
Um homem com um bastão de metal numa das mã
os passou a outra no banco de ferro para sentir com o tato se havia algo ou alguém ali. Em seguida, ele pôs a ponta do pé direito calçado de tênis sobre o banco para atar o cadarço. Fez isso com agilidade, como se tivesse luz nos dois olhos.
Enquanto o homem amarrava o tênis, uma mulher de estatura baixa, pele morena, enfiou o braço debaixo do braço dele e os dois cochicharam algo inaudível aos circunstantes.
A mulher parecia ter visão normal. Logo após amarrar o cadarço do tênis, os dois foram andando, com desenvoltura. O homem com o braço esquerdo sobre os ombros da mulher empunhava o bastão à frente do corpo com a mão direita. Ele tocava o chão da calçada de pedras portuguesas com o bastão de metal.
Os circunstantes olharam o casal indo embora, tamanha euforia, como quem tinha acabado de ganhar na loteria. Os dois pareciam felizes. Enquanto andavam, davam essa impressão porque riam com liberdade.
O homem certamente nunca tivera a oportunidade de ver o rosto da mulher. Mas, pelo tato, ele podia sentir o formato do rosto dela, do corpo e a textura dos seus cabelos. Podia sentir o cheiro dela e a conhecia bem por dentro.
Ela, ao contrário, tinha olhos para ver o rosto e o coração dele. Parecia apaixonada.
Ali ia um casal simples, simploriamente vestido. Ela trajava vestido de florezinhas vermelhas e amarelas e tinha os cabelos presos por uma gominha preta em estilo rabo de cavalo. Calçava sandálias de borracha.
Ele vestia casaco de frio de cor cinza, apesar do calor. Tinha o rosto comprido, o nariz adunco e barba por fazer. Usava boné na cabeça com a aba para a frente.
O caos do trânsito de todo dia estava prestes a acontecer. O movimento de ônibus, feito fera a rugir em meio aos carros de passeio, àquela hora do final do dia se intensificava.
Do prédio atrás do ponto do ônibus todo momento saía um carro da garagem. E a cada saída de mais um, sempre havia alguém para buzinar. Houve quem cedesse passagem para os que saíam da garagem. Constatou-se, ainda há compreensão e educação no trânsito.
Enquanto isto, o casal agarradinho se perdia na distância, expelindo por todos os poros a luz do fogo da alegria de viver um momento de paixão eterna.
*Leitor.