Português (Brasil)

A última madrugada em que caminhamos perdidos na madrugada, era março de 1968

A última madrugada em que caminhamos perdidos na madrugada, era março de 1968

Uma história de quando a rádio Tiradentes se transformou na rádio Globo e que depois, em 1991, integrou a Central Brasileira de Notícias, a CBN, com a participação de Rodrigo Mineiro, então chefe da Sucursal de O Globo em BH, para a criação de uma rádio “all news”

Compartilhe este conteúdo:

08-12-2022

06h:40

Roberto Pio Bastos (*)

Quer saber mais sobre o Benedito, o jornalista?

Nós trabalhamos juntos um bom tempo na Rádio Tiradentes. A rádio foi criada por um amigo do peito de Roberto Marinho.

Eles falavam todos os dias: João Veras e o seu amigo Roberto Marinho.

 Depois a Rádio Tiradentes virou Rádio Globo. Depois virou a CBN. Rodrigo Mineiro, na chefia da sucursal de O Globo, em Belo Horizonte, participou do comando das transformações da rádio, mudanças de estilo de fazer rádio, elaboradas ao longo de meses em Teresópolis, a partir de exemplos de outras emissoras, principalmente, dos EUA.

Nada disso tem valor.

Valor tem o Benedito.

Com ele e o Élson Martins (*) éramos os redatores das três edições de O Seu Redator Chefe, carro chefe do jornalismo do rádio do “doutor Roberto” - segundo Veras, o amigo do “doutor”.

Fazia o de meia noite e adiantava o material da edição do jornal das seis da manhã. A partir daí, saíamos, Benedito e eu, do Edifício Mariana, na avenida Afonso Pena, madrugada, em horário que não tinha mais ônibus.

Caminhávamos do centro até o Prado, onde nossas casas ficavam a dois quarteirões uma da outra, nas imediações da igreja Cura D'Ars.

Imagine este percurso, todas as madrugadas. A pé. Conversávamos?

Você conheceu Benedito.

Conversávamos? Claro que não.

Eu ouvia o Benedito.

E ele tinha muita coisa para falar. Como todo bom locutor, empostava sua voz, gostava de se ouvir. Fique claro, éramos sua audiência, eu e ele ouvíamos ele.

Ele ouvia-se, profissionalmente, para corrigir erros de fala e de pronúncia. Aprimorava-se, como todo locutor que se preza em nosso rádio.

 Agora, minha maior loucura, eu gostava de ouvi-lo. Mais experiente, não por ser mais velho. Repito. Loquaz, tinha prazer em argumentar. E, percebi, ele também tinha prazer em ouvir a própria voz.

Confirmava esta impressão ouvindo-o falando alto.  Uma voz forte, pausada, sílabas bem pronunciadas. Na madrugada, têm mais força de convencimento do que dita no estúdio da rádio.

Era, verdadeiramente, uma reflexão ambulante falava sobre:

1. a vida (mulheres, principalmente, quase que exclusivamente, “viver é amar” sentenciava), 

2. a profissão (crítico sagaz, porque sabia elogiar os patrões) e

3. a política - na rua opositor ferrenho, caustico e sarcástico. No ar, governista. Não, patronal. Valia a orientação/opiniões do doutor Roberto via Veras.

Ontem, quando ouvi que “Benedito morreu há mais de 20 anos”, retomei o meu Benedito como o conheci.

Alto, magro, sempre de terno, naquelas caminhadas. Tarado, parava o trabalho para namorar pelo telefone e se masturbava.

Eu e o Élson escrevíamos, sozinhos, quase todos os jornais. Benedito namorava.

Namorando, Benedito esquecia de tudo em volta. Isto dentro de uma sala não muito grande em que ouvíamos as falas dele para a moça. Sei lá se a moça, do outro lado da linha, não estaria também masturbando. Com certeza.

Coisa muito comum em rádio, ouvintes apaixonadas pela voz masculina – “você sabe da sedução de uma boa voz no rádio, você que ouvia rádio e, pelo que vi ontem, seu rádio continua ligado”.

Falava sobre o Benedito para aquela jornalista amiga dele e que, no seu Cachoeira dos Macacos, vivia de ouvido colado no rádio.

A madrugada em que parei de caminhar com Benedito, foi quando ele me recebeu para trabalhar assustado. Era um olhar de pavor ali dentro da redação da rádio Tiradentes. Nele, a expressão de medo tomava conta de todo o seu rosto e se expressava nas mãos trêmulas e na voz que quase não completava as palavras.

Era o medo de voltar a ser preso. Afinal, vivíamos o tempo da ditadura militar. 

O estudante Édson Luís, no Rio, fora assassinado naquela semana. E, na sequência, no mesmo dia do crime, o discurso, emocionado e violento, do governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, denunciava o assassinato.

Estas eram as notícias. O assassinato no Canecão, restaurante popular, no Rio.  E a fala de Lacerda.

Pouco depois da edição do meio-dia de O Seu Redator Chefe, a Rádio Tiradentes foi invadida pela polícia.

Naquele dia, eu terminara a redação do jornal e estava indo embora. A redação funcionava no 6º andar. Na fila do elevador, os policiais passaram por mim.

Não sabia e nem imaginava aonde eles iriam e nem que eram policiais.

Foram para a rádio.

No dia anterior, fora assassinado, no Rio de Janeiro, pela polícia o estudante Edson Luís (**). O governador do Rio, Carlos Lacerda, talentoso jornalista e melhor orador ainda, repito, fizera o discurso condenando o assassinato com várias frases “emocionantes e de efeito”. 

Características do seu discurso.

Trabalhei uma edição especial do jornal centrada no discurso, cujos trechos mais importantes entrelaçava com registros do episódio no Calabouço com entrevistas, pronunciamentos de autoridades.

Era uma senhora porrada na ditadura militar.

Para eles, os do lado de lá, o grave não era o crime cometido, o assassinato de um estudante em um restaurante popular, grave era o discurso de um ex-aliado dos militares.

Segundo Bendito, com cara de pavor:

 “Pô, cara, a polícia me prendeu por sua causa. E eles sabiam que eu não escrevi e nem editei o jornal”.

João Veras passou mal. Muito mal mesmo. Não foi por causa da polícia, de quem sempre se disse amigo

Naquele dia, João Veras atendeu um único telefonema de Roberto Marinho... e passou muito mal.

Internado, às pressas, ainda no hospital, revelou-se o teor do telefonema: Roberto Marinho demitira seu grande amigo, o piauiense João Veras.

Sexta-feira, 29 de março de 1968 foi meu último dia na Rádio Tiradentes.

(*) Com o Elson Martins e João Alberto Capiberibe fomos primeiro para o Pará pela ALN, onde em Castanhal, avaliamos a ação de resistência à ditadura, comandada por posseiros.

 (**) Edson Luís de Lima Souto (Belém, 24 de fevereiro de 1950 — Rio de Janeiro, 28 de março de 1968, quinta-feira) estudante secundarista brasileiro assassinado por policiais militares, durante um confronto no restaurante Calabouço, centro do Rio de Janeiro. Seu assassinato marcou o início de um ano turbulento de intensas mobilizações contra o regime militar que endureceu até decretar o chamado AI-5. Era aluno do Instituto Cooperativo de Ensino, no qual funcionava o restaurante Calabouço.

(*) Roberto Pio Bastos é, antes de tudo, jornalista. Ou só.

Imagem da Galeria Edson Luís de Lima Souto, estudante secundarista brasileiro assassinado por policiais militares, no restaurante Calabouço
Compartilhe este conteúdo:

 

Synergyco

 

RBN