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Pensar é o verdadeiro poder e é bom saber que todos os homens pensam, mesmo os que não escrevem

Pensar é o verdadeiro poder e é bom saber que todos os homens pensam, mesmo os que não escrevem

Entre os mistérios da alfabetização está o processo de controle das mentes através da gramática e da erudição agora redimensionada no volume de informações

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04-12-2022

06h:58

 

Roberto Pio Bastos*

Assim surgem os homens que ditavam ou os homens que sabiam pensar com qualidade. Tércio é o único homem identificado como o responsável por escrever as epístolas ditadas pelo apóstolo Paulo.

Paulo pensava, ditava. Tércio, o alfabetizado, sabia escrever e escreveu para Paulo (não saberia escrever?) todas as suas epístolas.

Todas aquelas cartas foram ditadas a um profissional que sabia escrever.

Séculos depois, encontraremos Tomás de Aquino a ditar suas reflexões para um grupo de anotadores, os profissionais do escrever.

Consta que eram mais de uma dezena, falam em 16 homens que escreviam, todos ao mesmo tempo.

Tomás ditava para cada um dos 16 ao mesmo tempo também.

Tinha que ser santificado mesmo.

Era capaz de discorrer, pensar, sobre tantos assuntos? Consta que sim. As provas são abundantes e volumosas.

No tempo de São Paulo, o santo da igreja católica, a tecnologia para a produção de textos não dispensava o especialista. Com a diferença de mais de dez séculos, mais uma vez, encontraremos o homem ditando, pensando, e outros homens escrevendo.

Qual foi a evolução tecnológica de Paulo a Tomás de Aquino na arte do pensar e da escrita?

Qual era o relacionamento entre estes dois seres de produção do pensamento, aquele que, essencialmente, pensa e dita, e aquele que, essencialmente, escreve?

Qual o diálogo possível entre estes dois produtores?

Qual a natureza e a colocação, a importância social, daquele que escreve para o outro, aquele que pensa?

A resposta, possivelmente, é clara. Claríssima. Escrever é um ato mecânico.

Pensar, não.

Os que escreviam foram para a poeira do tempo. Os que ditavam permanecem ainda. Exceção de Tércio.

Mesmo supondo que os que ditavam fossem senão analfabetos, pelo menos seriam incapazes de escrever. Ou preguiçosos. Incapazes da habilidade da escrita. Incompetentes, lentos, na demora no desenhar letras. Eram desenhadas mesmo. Letras produzidas por verdadeiros artistas plásticos

Letras que nada mais são do que símbolos.


Cristo que jamais escreveu uma linha, era tido como doutor? Dotado do verbo “divino” foi capaz de pronunciar um Sermão na Montanha, gravado e integrado aos evangelhos.

 Sócrates, antes dele, também, jamais teve textos escritos por ele mesmo?

Se Cristo e Sócrates não sabiam escrever, claro está que sabiam pensar.

Quantos séculos se passaram até que se publicasse o primeiro Evangelho Segundo Jesus Cristo?

Isto no final do Século XX, em 1991, em que o Tércio da vez foi o escritor português José Saramago que, pelo atrevimento, empolgou o Prêmio Nobel de Literatura.

Cristo, Sócrates e Paulo eram analfabetos?

Marco Polo também ditou suas viagens, enquanto esteve preso. Ditar mais do que escrever era pensar, em primeiro lugar. Ditado é feito para quem sabe escrever, ato mecânico.

Qual era a importância do pensar naquele momento da construção da civilização?

Por sua vez, qual a possibilidade de adulteração do pensamento através da escrita, considerando o aproveitamento dos recursos para a guarda, no ato de escrever, das ideias, relatos e pensamentos, além da limitação de vocabulário e de recursos instrumentais, materiais, de conservação e de reprodução?

Supõe-se que a sociedade se organizava produzindo profissionais para a tarefa da escrita e que esta tarefa tinha um custo. Assim, tais profissionais estariam numa faixa de raridade e custo alto. Sendo poucos, qual seria a valorização destes trabalhos? Que grupos valorizavam e a partir de quando passaram a valorizar a memória gravada, guardada na escrita?

Ao se debruçar sobre esta questão deve-se trazer de volta mais uma vez e sempre a questão do ser analfabeto, aquele que não conhece as palavras, que não lê palavras e que não escreve palavras. Um ser assim visto, apontado e humilhado com um ser analfabeto, sem alfabeto, sem palavras, sem escritos.

(É bom resgatar o vaqueiro Riobaldo, um filósofo analfabeto do eterno sei que nada sei e que ditou para o gravador de João Guimarães Rosa toda a saga dos jagunços do Urucuia).

Enfim, o homem que não dispõe do instrumento escrita para se comunicar.

Enfim, o homem que pensa, apenas capaz de pensar.

Hoje, para se alfabetizar (seria domesticar?) o homem gasta um tempo da sua infância, um tempo de dois a quatro anos. O que ele aprende além de ler e escrever? Ele aprende um conjunto de palavras, uma série de conceitos, alguns práticos, outros nem tanto; como também passa a dominar (?) a gramática e as regras da perfeita expressão.

Gramática se impõe como um instrumento de dominação das mentes e, por que não, também de coerção, de controle, de limitações. Ou a linguagem como a morada do ser e prisão, para os modernos gramático-revolucionários.

Na sociedade de Sócrates, os homens que não sabiam ler e escrever tinham o mesmo tratamento dos homens na sociedade atual? Se lá muitos eram analfabetos, esta deficiência, se era deficiência, se sanava com os homens-que-escreviam.

Os homens que pensavam, necessariamente, não precisavam se preocupar em escrever ou em ler, existiam aqueles profissionais treinados e preparados para a tarefa.

Nisto aí não há nenhuma fundamentação histórica e ou científica, pesquisas antropológicas ou mesmo a partir do material existente. O que se propõe é considerar a hipótese do pensar e da expressão do pensamento; o pensar e o memorizar o pensado.

Há um processo, que pressupõe os recursos de lógica existentes, nos vários momentos, extremamente ricos e que se, hoje praticado, como um laboratório, extrair-se-iam resultados a serem analisados para diversas práticas e aperfeiçoamentos.

Qual, por exemplo, a forma e a melhor forma de linguagem para se memorizar?

Dado um tema, eliminando os recursos de preparação, como se formaria um ditado a ser escrito?

A produção do ditado. A relação entre os dois personagens, a interação e o estabelecimento de regras.

Um laboratório seria Paulo a ditar para Tércio. Outro seria Tomás de Aquino ditando para oito ou 16 escribas, amanuense, escritores de cartas e de literatura filosófica etc. Quanto tempo levou Tércio para escrever para Paulo a Epístola aos Romanos? Quanto tempo levou Tomás a ditar O Ente e a Essência, a Suma Teológica? Qual era o ambiente de trabalho? De que materiais eles dispunham?

8h de uma manhã do inverno de 1987, o repórter chega rua Espírito Santo, em Belo Horizonte, onde encontraria com Darcy Ribeiro, secretário de Estado do governo de Minas. Ele saiu do banheiro com sua jovem e bela mulher. Ela trazia o gravador. Tomando banho, Darcy acabara de ditar mais um capítulo do seu romance MIGO.

*Filósofo, jornalista e escritor.

Imagem da Galeria Para escrever o livro "MIGO", Darcy Ribeiro gravava no computador e depois a secretaria dele desgravava tudo
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