Mendigo esquálido, mas digno recusa-se a receber a marmita porque achou que o doador dava o que ia comer
O sinal abriu e atravessei a rua fazendo de conta que não tinha visto nem ouvido nada, porque coisas do tipo “uma mão não deve saber o que a outra fez”, a gente sabe disso
Direto da Redação
18-09-2022
10h:20
Alberto Sena
Tenho gosto em observar as cenas de rua, talvez porque ando pela cidade, o que muito me apraz. Mas essa cena de hoje a ser contada minuciosamente, como diria no tempo de adolescência, “não está no gibi”. Gibi todos sabem, é uma revista em quadrinhos, naquela época, geralmente com histórias do velho oeste norte-americano.
Aconteceu de estar na Rua da Bahia com Rua Fernandes Tourinho à espera do sinal verde para atravessar a rua quando um senhor do lado, com uma sacola na mão, foi abordado por outro esquálido, roupas sujas e sandálias de dedos precárias.
Virei-me para o lado a fim de acompanhar a cena e ouvi o diálogo dos dois. O mendigo pediu:
- Moço preciso de comida.
Ao que o “moço” simplesmente levantou o braço direito e entregou a sacola, sem nada dizer.
O mendigo, então, deu uma olhada na sacola e reagiu:
- Não. Essa não!
- Por quê? Não!
- Essa é sua – disse o mendigo.
- Não. É sua – disse o “moço”.
Foi então que o mendigo recebeu a sacola, e se abriu em um sorriso acompanhado de agradecimentos vários.
O sinal esverdeou e atravessei a rua fazendo de conta que não vi nem ouvi nada, porque coisas do tipo “uma mão não deve saber o que a outra fez”, a gente sabe disso.
Mas não pude deixar de refletir sobre a bendita cena. Veja bem, o mendigo pediu comida e o “moço” deu o conteúdo de uma sacola. Devia ser uma marmita dessas de plástico, porque o mendigo olhou dentro e recusou, certamente achando que o “moço” lhe dava a própria marmita, o que na cabeça dele era como se estivesse tirando da boca para servi-lo.
Quão digno esse mendigo! Preferia continuar com fome a aceitar o que o outro lhe dava, achando que dava a própria marmita.
Foi necessário o “moço” dizer, “não, é sua”, porque certamente ele tinha a intenção de dar aquela sacola para o primeiro que aparecesse.
E foi esse mendigo digno o primeiro. Ele é só um dentre a quantidade de gente a pedir socorro nas ruas da capital e pelo Brasil afora. Aqui, a miséria pode ser fotografada pelos quadrantes da região central da cidade.
O “moço”, imagino, de certo deve ter ouvido antes uma vozinha interior a lhe dizer: “Entregue a marmita a um mendigo esquálido, esfomeado, roto, mas digno na sua maneira de ser”.