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70 anos sem Vargas

Foi num dia de agosto, com um tiro de Colt 32. Getúlio Vargas ficou na Presidência até 1937, quando deu um golpe visando mais tempo no cargo e mais poder

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20-08-2024 às 09h:19

Manoel Hygino dos Santos*

Agosto, mês aziago, segundo muitos. Já foi o sexto mês de um ano em épocas na velha Roma, mas com 31 dias, neste 2024, marca os setenta de suicídio de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, no âmbito de acirrada crise política. Sobre os episódios daquele tempo, foi publicado o meu livro “Vargas – de São Borja a São Borja”, em 2005 e, já ampliado e atualizado, em 2009.

Transcorridas sete décadas, ainda o sentimento em torno de Vargas permanece forte, porque o personagem principal do país naquele momento ainda é vívido e considerável. Outros brasileiros estão à frente dos destinos nacionais, mas ainda há uma espécie de continuação em fatos e causas de outrora.

Minas Gerais, hoje como então, mantém-se no centro de episódios e de ideias. Assim se lembra que a força maior que conduziu à vitória de Getúlio Vargas nos conflitos armados e políticos do terceiro decênio do século XX. Eles alcançaram culminância com o 6 de fevereiro de 1930, em Montes Claros, no Norte de Minas, estopim da revolução, mas o povo montanhês persistiu em defesa de pleitos e projetos, persistentes, demonstrados à suficiência, posteriormente, com o Manifesto dos Mineiros, em outubro de 1943.

No ano de 1930, podia-se sentir a falência da fórmula Café com Leite, isto é, Minas e São Paulo se revezando no comando da nação. O presidente Washington Luís e as forças que o apoiavam tentaram reagir com a eleição do paulista Júlio Prestes, e que serviu somente para fortalecer a oposição. Washington Luís foi despejado do Catete e da chefia da nação.

Após um interregno provisório de militares, o líder que viera do Sul concentrou grandes reivindicações e interesses nacionais, com o decorrer dos dias acrescidas das que o próprio Getúlio incrementara.

A procrastinação de um pleito geral fez arder ainda mais a chama que se acendera, após a revolução, com a pregação do fim do Estado Novo. Ao ambiente contrário a Getúlio, somavam-se as ressonâncias da grande crise econômica mundial, assim como a incessante disseminação de ideologias, crescentemente incrementadas na Europa e que resultaram na II Grande Guerra, em 1939.

Getúlio Vargas já dispunha de experiência adquirida no Rio Grande do Sul e na participação em decisões de âmbito federal.  Com mão férrea, conduziu o barco nacional, mas as forças contrárias se tinham avolumado, aglutinado e ganhado extensão e profundidade.

A família Vargas se assentara em solo gaúcho em tempo bem antigo, quando os ânimos eram tenazes em torno da terra. O general Manoel do Nascimento Vargas, nascido em Passo Fundo, teve destacada participação na vida política e militar gaúcha. A esposa, Cândida, da família Dornelles, teve relações extensivas com Minas. Os filhos foram cinco, Getúlio o do meio. Casou-se com Darcy, filha de estancieiro, comerciante e gerente do Banco Pelotense, em São Borja.

Getúlio e Darcy também tiveram cinco descendentes, uma foi Alzira. Formou-se em Direito, muito ligada ao pai, com o qual manteve fortes vínculos fortes e próximos. Viriato e Protásio estudaram em Ouro Preto, depois chegando Getúlio com seus quatorze anos.

Na chefia do Executivo, Getúlio ficou até 1937, quando deu um golpe visando mais tempo no cargo e mais poder. Assim foi até 1945, quando a oposição o removeu do Catete, principalmente para eleição de um presidente em sufrágio popular como prometido anos antes. Foi eleito o general Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra, que cumpriu seu mandato.

O voto popular

Nos anos 1950, novamente Getúlio na berlinda, disputando a Presidência com o brigadeiro Eduardo Gomes e outros candidatos. No ápice de toda a campanha, Carlos Lacerda aparecia no topo dos acontecimentos, em tom belicoso. Os militares que tinham alijado Vargas da chefia nacional não concordavam em tê-lo de volta à curul presidencial.

Mas ele foi eleito e empossado, a despeito da severa resistência política e de grupos militares. Em sua fazenda, Getúlio disse: “Denuncio que estou sendo ameaçado de violência, fraudes, golpes e até atentados pessoais. Nada disso, entretanto, me intimida”.

O ambiente se conturbava. O general Canrobert Pereira da Costa replicava: “Prefiro um mau governo a uma revolução. Se Getúlio for eleito, ele toma posse”.

O deputado Aliomar Baleeiro, da UDN, dava o tom da hora: “Queira Deus possa salvar o Brasil nesta rota de abismo porque caminha aceleradamente”.

Sobreveio a tentativa de eliminar Carlos Lacerda, o mais temido dos opositores a Vargas. O projeto previa a morte na primeira semana do mês.

Em 5 de agosto, já noite, quando regressava para casa, após uma palestra em colégio, tendo a proteção do major da Aeronáutica Rubem Florentino Vaz, em Copacabana, deu-se o fato.

Lacerda era vigiado pela guarda especial do presidente e, à porta do prédio em que residia, alguém disparou a arma, que atingiu o major que fazia a sua segurança. Em poucas palavras: o oficial evoluiu para óbito e o Brasil entrou em chamas. O jornalista ficou ferido num pé.

Abriu-se um inquérito. O projeto de morte de Lacerda teria sido perpetrado no Catete, devendo dele participar a guarda pessoal de Vargas, comandada por Gregório Fortunato, segurança de Vargas desde o Sul. A imprensa despejou um manancial de críticas violentas ao presidente.  O Galeão se transformou em palco de apurações.

Eleição nos anos 1950

Armou-se o palco para a eleição nacional em 1950. Vargas se sabia cercado de adversários por todos os lados. As próprias circunstâncias do primeiro governo, que não previra sufrágio popular, geravam prosélitos e inimigos. Crepitava a chama da discórdia e do antagonismo político, partidário e ideológico.

Esquerda e direita se digladiavam em nível internacional, a partir de 1939, mas a luta não se cingia aos campos de batalha. As nações subdesenvolvidas sofriam os efeitos da Europa em chamas, que se propagavam também no Oriente e atingiram as Américas.

No Brasil de Vargas, as desavenças não se circunscreveram aos meios intelectuais, políticos, artísticos e literários. O presidente, que relutara em enviar contingentes militares aos combates na Europa, aderindo aos aliados – EUA, Inglaterra, França, por exemplo, viu-se forçado a eles se unir. Nossos soldados foram terçar armas no Velho Mundo.

Havia uma guerra mundial e uma interna. Getúlio teve de enfrentá-las. O atentado da rua Toneleros definira as horas e os dias seguintes. A Última Hora publicara a manchete de primeira página: “Só morto sairei do Catete”, confirmando o desencanto de Vargas. E também: “Debaixo do Catete há um mar de lama”. O clima no Palácio era sombrio e assustador, relatou Augusto Frederico Schmidt que levara a Vargas um relatório sobre alimentação no Brasil.

Getúlio não tinha medo, confiava no povo, depositando nele suas últimas esperanças. Schmidt, após audiência com o presidente, no dia 23, véspera do ato final, afirmara em artigo: “Ele estava a dois passos da morte e não lhe vi nenhum gesto de impaciência, de rancor, de indignação. A História o julgará, pesando tudo o que ele fez de bom e de mau, dando medida às acusações dos seus implacáveis inimigos, como também os louvores dos seus apaixonados partidários.

Joel Silveira, veterano na Imprensa, ex-correspondente de guerra na Itália, comentou: “Tenho por Getúlio até hoje profunda antipatia. A minha perspectiva hoje a respeito dele mudou muito. Continuo a considerar que foi um tirano, um ditador feroz. Mas deve-se reconhecer em Getúlio o homem que mudou a situação do trabalhador brasileiro. Antes o operário não tinha direito a nada. Ao mesmo tempo, deu início à industrialização do Brasil com Volta Redonda. Getúlio teve uma qualidade rara em um governante brasileiro (e olhe que quem fala é um inimigo seu): era profundamente honesto. Vivia do ordenado dele”. E quem fala fora perseguido pelo DIP, o famoso Departamento de Imprensa e Propaganda.

Após longa reunião no Catete, que virou toda a noite, presentes as mais altas autoridades e pessoas de confiança de Vargas, já em dia novo, em torno das 8 da manhã, ouviu-se um tiro. Em derredor do antigo edifício, havia metralhadoras e trincheiras de sacos de areia rodeando as figueiras dos jardins do palácio. Dona Darcy apareceu numa janela chorando. Um médico surgiu em um elevador privativo, acompanhado por dois enfermeiros. Aquele desceu, perturbado, e disse apenas: “Não há remédio. O presidente está morto”.

Em seu quarto no Palácio, Getúlio dera um tiro no coração com um revólver Colt, cabo de madrepérola, calibre 32. As justificativas de seu ato estavam redigidas em cartas de testamento, que até hoje o Brasil lê.

*Da Academia Mineira de Letras e da Associação Nacional dos Escritores.

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