“O meu nome é Severino/ Não tenho outro de pia/ Severino da Maria do finado Zacarias/”. Os versos se repetiam com a mesma insistência das cenas do homem sendo jogado da ponte por outro homem.
14-12-2024 às 07h37
Tito Guimarães Filho*
Cena repetida em todos os noticiários da televisão naquela noite.
Imagens que traziam outras associações e outras imagens.
Como as dos versos de Morte e Vida Severina, do poema de João Cabral de Melo Neto.
Na ponte, também uma ponte, Severino pensa em se atirar no Capiberibe.
Na caminhada do sertão até Recife, o retirante Severino testemunhara muito sofrimento, muitas mortes.
Não queria mais viver.
Vai se lançar da ponte, não por outro homem. Severino quer morrer.
Ao ouvir o choro de uma criança que nasce de uma retirante como ele, Severino desiste de morrer.
A vida que nasce resgata-o.
Severino, nome comum, é salvo
Este poema vinha cada vez com mais força às imagens repetidas do homem sendo jogado para fora da ponte em São Paulo, na madrugada do dia 02 de dezembro de 2024.
1977
Ao entrar com o repórter Sidney Lopes no Hospital São Francisco, no Bairro Concórdia, na Região Nordeste de BH – porta aberta pelo padre da paróquia de São Dimas, no Vale do Jatobá.
Diante de nós estava um homem quase ninguém, pequeno. Menor ainda do que já era. Magro, pele e osso simplesmente.
Tão pequeno e tão magro como Marcelo Barbosa do Amaral, 25, o homem jogado de uma ponte por um policial militar na região de Cidade Ademar, na zona sul da capital paulista.
Jorge Defensor sobrevivera um bagaço.
Todo quebrado.
Ele relataria todas as sessões de tortura
Seus dias e noites nas mãos da polícia
Na fala entrecortada por um refrão de poucas variantes
“Eu sou um homem, eu não sou um rato “
“Não sou um rato. Eu sou um homem”
Fala primeiro com os dois repórteres e com o padre
Redação do jornal Estado de Minas, o maior jornal dos mineiros
Wander Piroli, da Editoria de Polícia, controlando a manada de touros dentro do peito.
Lê a matéria.
Passa a mão nos olhos.
Wander Piroli levanta.
Põe a mão no ombro do repórter.
Sai da redação, vai fumar.
Aquele homem imenso era pura sensibilidade.
E indignação.
Chama o diagramador Arnold Evangelista. Editará a matéria
No dia seguinte, publicada a matéria no sábado, Jorge Defensor falará com mais detalhes ao governador Aureliano Chaves, levado ao hospital pelo jornalista Mauro Santayana.
Depois repetirá seu relato ao promotor Alberto Pontes, nomeado pelo governador de Minas para acompanhar as investigações, o inquérito policial e o processo na Justiça Criminal.
O promotor apurou que a prisão de Jorge Defensor ocorreu em 29 de abril de 1977, desde então, o operário vinha sofrendo torturas. A internação no Hospital São Francisco ocorreu em 6 de maio, menos de duas semanas depois da detenção. Somente em setembro os repórteres do EM conseguiram falar com ele. Para o promotor Alberto Pontes, o tempo de internação dá um indício do nível da brutalidade a que o trabalhador fora submetido.
Ao governador, Defensor revelara os nomes dos policiais que o torturaram: João Bosco, Jurandir, Fiel e Adelmo, todos da Delegacia da Cidade Industrial.
Repetirá o refrão depois ao juiz João Batista da Costa e Silva da 9ª Vara Criminal de BH que vai ao hospital:
“Amarraram-me como se fosse um cabrito e me bateram como se eu fosse um rato”
O juiz ouve Jorge Defensor, um Severino.
A ordem era para jogar Jorge Defensor no São Francisco. Não no Hospital São Francisco. Mas, no Rio São Francisco
2024
São Paulo, 02 de dezembro
Um homem jogado da ponte por outro homem, um policial
Marcelo disse que, naquele dia — madrugada da segunda-feira (2/12) –, voltava da casa da esposa, em sua moto, seguindo pela Avenida Cupecê, próximo da divisa da zona sul da capital com a cidade de Diadema, quando viu vários policiais militares “com cassetetes na mão”.
Ele conta que se assustou com a quantidade de PMs, por isso, freou a moto bruscamente e começou a correr. Foi neste momento, segundo o depoimento, que o rapaz foi atingido “com o cassetete na cabeça e nas costas”.
EU NÃO SEI VOAR
Em depoimento à polícia, Marcelo contou que passava de moto pela região e foi abordado pelos policiais. Ele parou a moto e os policiais militares correram em sua direção. Imagens de uma câmera de segurança mostram Marcelo parando sobre a ponte, descendo da moto e correndo. Os policiais correm atrás dele e a situação não é mais vista pela câmera. Em seguida, as imagens mostram Marcelo sendo conduzido pelos policiais e, em seguida, jogado da ponte.
Manobrista na região da avenida Paulista, seus documentos não foram requisitados em nenhum momento: “Isso eu disse para o policial: eu não sou ladrão e a minha moto não é roubada. Minha moto tá certinha. Nada de errado”.
“Uma sensação horrível. Eu pensei que ia morrer. A partir do momento que ele falou pra mim que ia me jogar da ponte. Eu não sei voar”.
*Diretor de Redação do Diário de Minas