Espero que as dicas tenham serventia para você. Embora sucateada e menosprezada pelo Poder Público, a universidade brasileira segue sendo um espaço de transformação social
24-12-2024 às 09h14
Professor Philippe Almeida*
Participei como examinador, nas últimas semanas, de duas bancas, na faculdade onde trabalho: para selecionar novos mestrandos, e para contratar professores substitutos. Os acertos (e os erros) dos candidatos nos dois certames me fizeram pensar em características da vida acadêmica que, se eu conhecesse vinte anos atrás – quando entrei na universidade – teriam tornado minha trajetória muito mais fácil. Foi este o impulso que me levou a escrever este artigo: compartilhar, com jovens que aspiram à carreira universitária (notadamente no campo das Ciências Humanas), algumas impressões que acumulei no correr dos anos. Como diria minha mãe: “se conselho fosse bom não se dava, se vendia”. Tome essas sugestões com ressalvas, com parcimônia. Evidentemente, o que valeu para mim pode não valer para você!
CASO ESTEJA INICIANDO A GRADUAÇÃO…
Ninguém, a não ser seus pais, se importa com suas notas. Conheço poucas instituições sérias que, efetivamente, consideram o histórico escolar, para aferir bolsas etc. Isso porque a sala de aula é apenas uma dimensão – relativamente pequena, vale frisar – da vida de um graduando. Atividades como iniciação científica, iniciação à docência (monitoria), participação em grupos de pesquisa e em ações de extensão, bem como organização de seminários, podem ter muito mais impacto, no seu desenvolvimento, que bons resultados no boletim. Então, se engaje! Explore as atividades “extracurriculares” que a universidade tem a oferecer. “Ora, mas a faculdade onde estou não tem atividades dessa natureza…” Nesse caso, minha sugestão é: ajude a criá-las! Ingressar no centro acadêmico pode ser uma solução, para que, atuando junto à gestão da faculdade, estimule o desenvolvimento de projetos de ensino, pesquisa e extensão. Os mais longevos grupos de estudos que conheci, no correr dos anos, foram fundados por discentes – e os mais estimulantes congressos de que participei, na vida, foram liderados por alunos.
As seleções de mestrado e doutorado têm se tornado cada vez mais disputadas ao longo dos anos. Hoje, muitos candidatos concluem a graduação já com artigos, capítulos e livros publicados. Caso deseje se tornar competitivo, sugiro que busque oportunidades para produzir trabalhos acadêmicos. São poucas as revistas interessantes que aceitam escritos de estudantes de graduação – mas elas existem! No campo das Humanidades, cito a prestigiosa REVICE – Revista de Ciências do Estado, feita por e para alunos, e muito bem avaliada. [Observação: não confunda veículos de notícia – como o Migalhas ou o Conjur – com periódicos acadêmicos! Determinadas publicações podem te dar prestígio entre os colegas, mas não ter impacto algum no seu currículo.]
“Mas sobre o quê escreverei, se mal comecei minha jornada na universidade?” Na academia, somos todos anões sobre os ombros de gigantes, inseridos dentro de uma tradição crítica. É tradição, pois temos, como pesquisadores (ou aspirantes a pesquisadores), o compromisso de compreender, preservar e retransmitir o legado de intelectuais que vieram antes de nós. E é crítica, porque esse compromisso não implica uma aceitação passiva desse legado – cabe a nós apontar as lacunas e as falhas dos trabalhos daqueles que nos antecederam. Um bom acadêmico sabe que não há “vacas sagradas” na ciência: toda hipótese pode ser – e fatalmente será – derrubada algum dia, por pesquisadores mais jovens. Digo isso pra exortá-los a um exercício de humildade: se deseja pesquisar, se insira no laboratório ou no grupo de pesquisa de um professor que admira, e tente lhe seguir os passos (auxilie em suas investigações, colabore com aspectos específicos do projeto dele, proponha que escrevam em parceria, sobre temas que interessem a ambos)… Com o tempo, aprenderá a caminhar “sozinho” – a verdade é que, na universidade, estamos sempre trabalhando em colaboração, e pesquisas feitas “em rede” são muito mais auspiciosas.
Além disso: não deixe de registrar todas as atividades de que você participar, em seu currículo Lattes (e pedir certificado de todas essas iniciativas). Se você ainda não tem um currículo Lattes, deve fazê-lo. Agora. Interrompa a leitura, vá a Plataforma Lattes, preencha os dados, e volte. É sério.
CASO ESTEJA CONCLUINDO A GRADUAÇÃO…
Há dois tipos de pós-graduação: a stricto sensu (em sentido estrito) e a lato sensu (em sentido lato). A lato sensu também é conhecida como “especialização”. A stricto sensu alberga o mestrado e o doutorado. Entendo que, para quem aspira à carreira acadêmica, é a pós-graduação stricto sensu que deve ser visada. Embora algumas pessoas optem por fazer o doutorado imediatamente após a graduação, a maioria, nos dias atuais, escolhe primeiro cursar o mestrado (o que eu aconselho EFUSIVAMENTE). É o mestrado que dará arcabouço teórico e instrumental metodológico para fazer o doutorado. Qual a diferença entre um e outro? O mestrado tem, em média, duração de dois anos, período ao fim do qual você irá – sob orientação de um professor – defender, perante uma banca, uma dissertação (isto é, um livro pequeno, no qual busca discorrer sobre um aspecto específico do seu campo de conhecimento). O doutorado, por sua vez, tem duração aproximada de quatro anos, e deve, tal qual o mestrado, resultar na produção de um livro – a tese, que se diferencia da dissertação por trazer a exigência de originalidade, de contribuição nova e autoral para uma área do saber.
A escolha do programa de pós-graduação no qual deseja realizar seu mestrado não é arbitrária. Normalmente, o candidato deve elaborar um projeto de pesquisa, que será avaliado por uma banca. Você deve se fazer duas perguntas, ao eleger um tema de investigação: a) já há outros trabalhos acadêmicos que abordam, de maneira satisfatória, essa temática?; e b) eu tenho tempo e recursos para desenvolver essa investigação a contento, no curso de dois anos? Se a primeira pergunta for positiva, você deve abortar o projeto: uma pesquisa acadêmica precisa genuinamente contribuir com a fortuna crítica relacionada a um assunto, mas, se já existem outros escritos que tratam com consistência o problema que você elegeu, não faz sentido que retorne a ele (a não ser que tenha razões para crer que a maneira como esse problema foi abordado em obras anteriores precisa ser corrigida). E se a segunda pergunta for negativa, você também deve abrir mão do projeto: pouco adianta se a pesquisa for interessante, mas não for factível, quer dizer, não for executável no curto período que as instituições destinam ao mestrado.
Mas essas condições não bastam! Você precisa escolher um programa de pós-graduação (e uma linha de pesquisa) no qual sua proposta genuinamente se encaixe. Bons programas de pós-graduação têm perfis muito bem definidos: uma pós-graduação focada em produzir investigações sobre vulnerabilidades e direitos fundamentais, por exemplo, dificilmente aceitará projetos de pesquisa sobre enfiteuse ou laudêmio. Não basta que seu trabalho seja excelente – é preciso que ele seja excelente PARA A INSTITUIÇÃO NA QUAL VOCÊ PLEITEIA UMA VAGA. Seu projeto de pesquisa precisa dialogar com as publicações dos discentes e dos docentes do programa de pós-graduação: cite dissertações e/ou teses desenvolvidas na instituição, e mostre que seu mestrado agregará a uma tradição crítica assentada naquela casa. Nas temidas entrevistas sobre o projeto de pesquisa, é raro que as bancas “sabatinem” os candidatos sobre questões abscônditas relativas a uma dada ciência – ninguém vai te perguntar, à queima-roupa, “em que ano Hegel publicou os Princípios da Filosofia do Direito”, ou “onde Deleuze lecionava quando publicou O Anti-Édipo com Guattari”. O mais provável é que te interpelem sobre as conexões entre o seu projeto e os professores do programa no qual você pretende entrar. Logo, dizer que “você não conhece nenhum docente da instituição, mas se informará caso seja aceito” pode dar ensejo a reprovação sumária.
CASO ESTEJA CONCLUINDO A PÓS-GRADUAÇÃO…
A integração entre graduação e pós-graduação é muito bem avaliada pelo governo (e, por conseguinte, incentivada pelas universidades). Assim, sugiro que, ao longo do mestrado e do doutorado, você abra grupos de estudo para os graduandos ou, na condição de estagiário de docência, ofereça disciplinas. Pode atuar em disciplinas obrigatórias, ou, ainda, em eletivas/optativas – nas quais a estruturação do plano de ensino é mais flexível. Dica: proponha ao seu orientador que, no correr da pesquisa, ofertem juntos uma matéria eletiva relacionada a seu tema de pesquisa. Isso pode ajudá-lo a desenvolver o projeto (afinal, terá um espaço semanal de interlocução com seu orientador, e um público cativo, de discentes, com os quais dialogará sobre seus interesses de modo contínuo). Além disso, você pode, ao lado de seu orientador, coorientar trabalhos de conclusão de curso e de iniciação científica – outra maneira de criar oportunidades para conversar rotineiramente sobre seus temas de pesquisa.
É natural que, ao longo do mestrado, nossas intuições iniciais caiam por terra, e nosso objeto de pesquisa sofra mutações. Tanto uma investigação que corrobora nossas hipóteses prévias quanto uma que as derruba são legítimas – o que não podemos é, contrariando todas as evidências que a pesquisa nos dá, seguir insistindo num projeto com o qual não mais nos identificamos.
Adquirido o diploma, é hora de participar de seleções para professor. Normalmente, elas se organizam em três etapas: análise de currículo (por isso, mantenha seu Lattes sempre atualizado, e não se esqueça de encaminhar a documentação comprobatória de suas publicações, dos eventos em que se apresentou, das bancas de que participou etc.); prova escrita; e prova didática. A prova escrita, no mais das vezes, se dá por sorteio de pontos: no edital, a banca lista dez ou quinze temas possíveis, e no dia marcado, sorteia um ou dois dentre eles, pedindo aos candidatos que redijam um pequeno texto dissertativo a propósito do assunto. É o momento de mostrar erudição: uma boa prova dissertativa é aquela em que o candidato revela familiaridade com a literatura relativa ao ponto, passando pelos autores e pelos movimentos que a instituição na qual está procurando entrar considera relevantes. “Se está em Roma, faça como os romanos”: não se adstrinja à bibliografia indicada no edital, mas cite as correntes que influenciaram a faculdade em que deseja ingressar.
A prova didática é a mais importante e a menos compreendida. Trata-se de uma aula – que tem, normalmente, entre 30 e 50 minutos – ministrada pelo candidato a uma banca de professores. O que se avalia na prova didática é a… didática!!! Muitos candidatos querem surpreender a banca com seus vastos conhecimentos, começam a regurgitar atabalhoadamente autores e mais autores, e apenas passam vergonha. Mais que o conteúdo, os candidatos precisam atentar para a FORMA: saiba que a banca estará observando a maneira como você maneja recursos didático-pedagógicos, e não só sua capacidade de decorar informações. Se a prova é de 50 minutos, não deve encerrá-la em menos de 45, ou em mais de 50. Candidatos podem ser EXCLUÍDOS DO CERTAME por falhas como essa.
Ademais, evite recorrer a vídeos, power-points etc.: caso dê problema – e, pela Lei de Murphy, sempre dará! –, isso irá te desconcentrar, e tomará parte de seu tempo de aula. Leve o plano de aula impresso (preferencialmente, com imagens ilustrativas, como pinturas e fotografias), e PERGUNTE ao presidente da banca se pode distribuí-lo. Sou entusiasta dos métodos de ensino-aprendizagem participativos, mas… NUNCA os utilize na prova didática! Prova didática é aula expositiva, sua capacidade de falar, DIDATICAMENTE, sobre um tema previamente definido, e dentro de um período estabelecido. Quanto mais linear for sua exposição, melhor, deixe os arroubos à la “Sociedade dos poetas mortos” para quando estiver contratado.
Espero que as dicas acima tenham alguma serventia para você. Embora sucateada e menosprezada pelo Poder Público, a universidade brasileira segue sendo um espaço de transformação social e empoderamento, no qual a sociedade pode refletir sobre si mesma e idealizar futuros. A docência é um sacerdócio, uma vocação, e poucas coisas são tão emocionantes, para um professor, quanto ver jovens empenhados em dedicar-se à vida acadêmica (contra todas as intempéries). Boa sorte!
*Professor de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)