
Nasci em 1944 na Ucrânia em plena guerra. A minha mãe era casada com um oficial da marinha a serviço de Hitler. CRÉDITOS: IA (Foto Ilustrativa)
10-03-2025 às 09h24
Rita Prates*
– Descobri há sete anos que a minha mãe tinha mais duas filhas. Eu e as minhas irmãs fomos pegas de surpresa quando recebemos um telefonema de um programa da Ucrânia que procura parentes desaparecidos.
-Como assim! disse-lhe espantada. Ela então começou a falar confundindo datas. Pedi para que me contasse desde o início, para que eu entendesse todo esse mistério. Klara respirou fundo e começou a falar, e eu a questioná-la para tecer com fios de prata essa história incrível e enigmática de sua família.
– Nasci em 1944 na Ucrânia em plena guerra. A minha mãe era casada com um oficial da marinha a serviço de Hitler.
– Sabe quem era Hitler? – Perguntou-me em voz baixa para não despertar interesse das outras pessoas ao nosso redor.
Balancei a cabeça em sinal que sim. Ela prosseguiu quase a sussurrar, obrigando-me a levar a minha cadeira para mais perto dela.
– A minha mãe tinha duas filhas pequenas. Um dia o marido foi designado para atuar em uma batalha naval e não voltou. Ela sempre procurava notícias dele, mas não conseguia. Passaram-se dois anos e, nesse ínterim, ela se apaixonou por um rapaz, meu pai. O marido sem avisar retornou de licença do combate e a encontrou grávida. Furioso, expulsou-a de casa e lhe tomou as duas filhas, proibindo-a de vê-las.
– No dia do meu nascimento o meu pai, que servia no exército, saiu na surdina e ficou por três horas com a minha mãe até eu nascer – disse-me ela com um leve sorriso.
Sem saber ao certo se o pai foi penalizado ou não, Klara diz que ele foi mandado para frente de batalha e a mãe não teve mais notícias dele. Faltavam dois dias para o aniversário de um ano de Klara, quando de madrugada bateram na porta da casa dela e, ao abrir a porta, a mãe deparou com o seu pai barbudo, magro, aos farrapos e ferido gravemente nos braços.
Ele disse que fugira da guerra. Era um desertor procurado pela polícia. Na fuga, ferido só sobreviveu porque se escondia em fazendas próximas. Quando se sentiu seguro resolveu voltar para casa. Klara me contou orgulhosa que a mãe lhe ensinou a falar o nome do seu pai, e quando ele a pegou no colo pela primeira vez, ela o chamou pelo nome, fazendo-o chorar de alegria. Quatro meses depois de escondido na casa a guerra teve fim.
– Após a guerra tudo era racionado. Klara olha para o céu a procura de um passado que não ficou registrado em sua memória e se esforça no resgate dos casos contados pelos pais sobreviventes.
Os pais de Klara estavam na Alemanha quando ergueram o Muro de Berlim. A Alemanha ficou dividida em Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental. Muitos amigos e os avós dela que viviam na parte Oriental ficaram retidos lá, e nunca mais conseguiram vê-los.
– A minha mãe teve mais uma filha nessa época. Ela descrevia que todo mês, as provisões de cada família eram distribuídas pelas unidades responsáveis. O que mais a deixava chateada era quando recebia um maço de cigarro para os homens e meio maço para as mulheres e uma pequena barra de manteiga. Ri ao dizer que os alemães amam manteiga e cigarros, mas eram obrigados guardar a sete chaves e consumir com moderação.
– O meu pai era muito sedutor, aproveitou dos seus dons para conquistar a filha de um fazendeiro, assim trazia comida escondida para casa. Um dia, chegou com um porquinho que cortaram em pedaços e cozinharam à noite, à luz de velas, para não atrair a atenção da vizinhança. Um delator sentiu o cheiro e chamou a polícia que levou, sem dó, a carne cozida tão desejada. Toda a família ficou revoltada por terem perdido um alimento importante que lhes dariam mais energia para passar o mês.
Em 1949, resolveram ir embora, atravessar o oceano e ir morar na Austrália. No porto reinava uma multidão de pessoas que queriam sair do país e, na confusão de barcos, gente e malas, embarcaram em um navio errado e vieram parar no Brasil.
A mãe de Klara conta que a viagem foi em um navio lotado e havia muitas restrições de comida e de espaço, mas ao desembarcar ela carregava no ventre mais uma menina, agora brasileira.
Foram morar no sul do Brasil e passaram por muitas dificuldades financeiras. O pai trabalhava de mecânico, a mãe costurava roupas em uma fábrica. As filhas pequenas ajudavam nos afazeres domésticos e depois como vendedoras na mesma fábrica da mãe.
O pai nunca deixou de ser sedutor e por anos acumulou uma série de amantes. Cansada das traições do marido e de suas bebedeiras a mãe o deixou e foi morar com as filhas. Com o tempo, ele se tornou um homem só e angustiado. Contam os vizinhos que o pai ficou um final de semana inteiro ouvindo músicas ucranianas na vitrola, cantando a toda altura, dançando polca, e bebendo Vodka com amigos e parentes imaginários deixados no além mar. Na segunda feira foi achado morto caído na sala.
Klara se refere a mãe como uma mulher reservada, de pouca conversa, mas amorosa, porém exigente. Disse que ela tinha um olhar distante, sem brilho e poucas vezes a viu dar um sorriso descontraído. O pai morreu aos 56 anos e a mãe aos 78 anos.
Quando o programa da Ucrânia procurou por elas contando que tinham mais duas irmãs, elas mal acreditaram. Durante toda a existência de seus pais nunca ouviram falar que tinham mais irmãs, só confiaram quando mostraram as certidões de nascimento delas. Convidaram-nas para irem a Ucrânia conhecerem as irmãs com tudo pago. Negaram, então vieram com toda a parafernália de uma produção de vídeo atrás delas. Faziam questão de bancar todos os gastos, inclusive a vinda da irmã mais nova que na época tinha 70 anos.
– O evento foi muito estranho para nós. – Klara suspirou forte quando falou do encontro com a irmã. – Tudo era filmado e o sentimento ficou em preto e branco. Não houve emoção por parte dela, talvez devido a tanta luz e ação. Contou-me, porém, que se sentiu sensibilizada quando a irmã lhe disse que o pai as colocou em um colégio interno e que viviam em constante solidão. O pai delas casou três vezes e com a última mulher teve um filho. Deles não receberam nenhuma atenção e carinho. Eram órfãos de mãe desaparecida e pai ausente.
O momento que despertou em Klara um sentimento familiar, foi quando a irmã estrangeira colocou um punhado de terra trazida do seu país no túmulo de sua mãe e fez uma oração. Viu na irmã a tristeza e a frustração de não ter encontrado a mãe viva para poder abraçá-la e, quem sabe, falar da falta que ela fez em suas vidas.
Hoje, Klara com 77 anos é viúva de um homem que cuidou dela com carinho mais de cinquenta anos e a deixou com uma situação confortável para viver. Ele a conheceu ainda jovem, sem experiência e se apaixonou pela loirinha que penava para sobreviver junto com a família exilada. Casaram, o marido sempre zeloso lhe deu o conforto e tranquilidade para educar os filhos sem ter que trabalhar fora.
Klara me convidou para ir a sua casa assistir a uma fita da gravação do programa. Fiquei curiosa e com muita vontade de ver como e até onde esse programa conseguiu resgatar e aprofundar nos meandros dessa marcante história de família.
*Rita Prates, escritora, é mestre em Administração, professora de graduação e de pós-graduação em Gestão, autora do blog vidasemcontos