
Nenhuma expressão diz mais ao bom gosto e à boa educação do que savoir vivre. CRÉDITOS: Divulgação
Getting your Trinity Audio player ready...
|
26-01-2025 às 09h40
Marcelo Galuppo
Nenhuma expressão diz mais ao bom gosto e à boa educação do que savoir vivre
(pronuncia-se savuá vívre). É muito mais do que etiqueta, porque denota certo modo
de vida, de transitar pelos eventos do cotidiano com galhardia, de saber que palavras
escolher para dizer algo, como segurar uma xícara com seu pires, como escolher o
melão no ponto certo para que alcance o apogeu de sua doçura no momento em que
será consumido, e que o dicionário Robert (o leitor frequente já percebeu que sou o
fanático dos dicionários) define assim: “Arte de bem dirigir a própria vida; qualidade da
pessoa que conhece e sabe aplicar as regras da polidez”. A única palavra que compete
em abrangência e profundidade com essa expressão francesa é a italiana sprezzatura,
popularizada por Baldassare Castiglione para significar que algo extremamente difícil é
feito como se não requeresse esforço ou premeditação (parece ser a mesma coisa,
mas sprezzatura exige um toque extra de gesticulação).
O savoir vivre se compõe não só de boas maneiras, mas também de padrões de bom
gosto e de técnicas para extrair o máximo de qualquer experiência. Vai muito além de
saber que, a mulheres casadas (com outros homens), presenteia-se sempre com rosas
amarelas, que a ordem certa dos talheres é de fora para dentro, que a única bebida
alcoólica admissível no café da manhã é champagne rosé e que qualquer pessoa
civilizada tem no porta-luvas uma sacola vazia, uma lanterna e um guarda-chuva: é a
arte de navegar pela vida social sem causar problemas para os outros e, sobretudo,
para si próprio. O savoir vivre é um modo platônico de encarar a existência civilizada
(porque, para Platão, haveria muitos modos de errar, mas somente um de acertar).
Marcelino de Carvalho, precursor da crônica social no Brasil há 70 anos, ensinava, por
exemplo, que coquetéis, ao contrário de bailes e jantares de gala, foram feitos para
serem rápidos, uma breve pausa entre o trabalho e o jantar, e que, por isso, seu
sucesso dependeria de os convidados se aterem a 4 S’s: Surgir, saudar, sorrir e sumir.
Ele ensinava também que, quando um homem abre a porta de um banheiro e vê uma
mulher desconhecida, deve dizer imediatamente “desculpe, cavalheiro”, e fechar a
porta, fingindo um grau de miopia que o incapacita para a vida comum.
As técnicas do savoir vivre comportam variações, e um exemplo disso é que existem
várias para sair à francesa (Fernanda Britto que não nos ouça, de onde ela estiver,
porque achava indelicado sair sem se despedir ao menos dos anfitriões, mas há várias
ocasiões, e coquetéis são apenas uma delas, em que não há necessidade de se
despedir de quem o oferece ou é homenageado na ocasião – desde que você os tenha
cumprimentado ao chegar). Recentemente, descobri mais uma (sou incapaz de
recordar quem escreveu sobre ela; li na internet, e o que se escreve na internet não
pertence a ninguém): Quem sai à francesa quer dar a impressão de que ainda está
presente, quando não mais está. A técnica proposta consiste em escolher quatro ou
cinco pessoas (as mais populares da festa) e dizer-lhes: “A festa está ótima! Vou
circular um pouco por aí.” Logo após, saia. Aquelas quatro pessoas farão o serviço de
deixar a impressão de que você ainda está presente. Alguém lhes perguntará: “Você
viu fulano?” E elas responderão: “Vi sim, já chegou. Está circulando por aí”.
Também desenvolvi uma técnica para cancelar assinatura em clubes de vinho (serve
também para clubes de whisky, mas não para clubes de cerveja: as técnicas do savoir
vivre são sempre muito específicas, não se comem mexilhões como se comem ostras).
Você liga para a central de atendimento e diz ao atendente que pretende cancelar a
assinatura. Os atendentes têm um roteiro a seguir, um protocolo orientado para fazer
com que a pessoa não desista da assinatura, que consiste em constranger o
consumidor ou oferecer-lhe condições supostamente muito melhores (que, com o
tempo, mostram-se apenas mais caras e impõem algum tempo extra de fidelidade ao
plano). Para escapar dessa armadilha (sim, savoir vivre é um modo de escapar das
armadilhas da vida em sociedade), é preciso dar a resposta certa, que impede a
aplicação do protocolo, porque todas outras (fui à falência, recebo mais vinhos do que
posso beber, os vinhos são baratos demais para mim, os vinhos são caros demais para
mim) possuem réplicas previamente pensadas para lidar com elas. Há apenas uma
resposta para a qual não há contra-argumento:
- Alô!
- Boa noite. Eu me chamo Maria Antonieta e vou estar prosseguindo com seu
atendimento. Qual é seu CPF? - 123.456.***-**
- Já localizei seu plano, senhor Marcelo. Em que posso ajudá-lo?
- Eu gostaria de cancelar o clube.
- Poderia informar por que?
- Porque me converti, e agora não bebo mais.
Uma mentirinha aqui e ali faz parte do savoir vivre, sobretudo quando economiza o
tempo nosso e o dos outros.
*Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG e autor do livro Os sete pecados capitais e a
busca da felicidade, pela Editora Citadel, dentre outros. Ele escreve aos domingos no Diário de Minas.