O ponto talvez mais baixo da conformação do regime político da Nova República viria na fixação doentia de FHC em relação à aprovação da Emenda Constitucional que passaria a permitir sua própria reeleição.
29-01-2025 às 10h15
Hugo Rezende Henriques*
Regime Político é o nome que a Teoria do Estado confere, no estudo das formas políticas, a toda sorte de configuração político-institucional efetiva e duradoura que estabiliza (ainda que sempre dinamicamente), por algum período o jogo de forças em um dado Estado. É seguramente a classificação mais árdua do ponto de vista teórico, justamente por envolver a vida política real, e, portanto, as paixões políticas tanto quanto as racionalidades, em qualquer esforço de sua compreensão. Por essa razão, até mesmo as nomenclaturas dos regimes políticos são disputadas incessantemente. Para um exemplo recente, vejamos o período brasileiro que se estende de 1964 a 1985 (e a datação tampouco é livre de disputas): seria o período do “regime de exceção militar” para seus apologistas, a “ditadura militar” para os muitos críticos, ou ainda a “ditadura civil-militar” para os críticos talvez mais cautelosos ou rigorosos.
Os regimes políticos tampouco nascem da noite para o dia, de súbito, ou da mente de um único artífice de instante. Vão sendo testados, experimentados, avançam e retrocedem, se aprimoram na capacidade de estabilização das forças que sua característica, ou afinal perecem. Dos regimes políticos brasileiros mais bem descritos, o de nossa “Primeira República” (e me esquivo propositalmente de qualificá-la de “velha”), brilhantemente descrito por Victor Nunes Leal em seu essencial “Coronelismo, enxada e voto”, se conformaria lentamente, e somente dez anos após o golpe republicano de 1889, durante o governo do presidente Campos Salles (1898-1902) teria todas as condições de se estabelecer de fato. O nosso regime político “coronelista” estabilizou as forças políticas brasileiras em torno de um acordo tácito relativamente simples: o poder central (a presidência da República) abstinha-se de intrometer nos assuntos locais, que ficavam a cargo dos mandões de cada região (os “coronéis”, que nomeiam o regime), em troca do apoio parlamentar irrestrito dos eleitos à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal (cujos votos eram garantidos pelos coronéis) ao Presidente da República.
Outro regime político pátrio, o do corporativismo estadonovista que ficaria conhecido pelo nome pessoal do ditador como “varguismo”, também foi gestado ao longo de quase uma década, em resposta precisamente à debacle do coronelismo da Primeira República (e à quebra do pacto do “café com leite”). Sua história se estende desde a conformação da bem-intencionada “Aliança Liberal”, em 1929, à vitoriosa Revolução de 1930, e especialmente à reconfiguração das forças políticas nacionais que seria levada a cabo pelo governo de Getúlio Vargas a partir ainda de 1931, quando da promulgação da “Lei de Sindicalização” – inspirada na Carta del Lavoro promulgada por Mussolini na Itália em 1927. O varguismo buscou se apoiar na industrialização e urbanização brasileiras crescentes, cooptando as forças laborais e patronais pela via dos sindicatos diretamente vinculados e dependentes do Estado, de forma a garantir uma forma de escamoteamento do poder parlamentar (que seria afinal cerrado a partir de 10 de novembro de 1937, e assim permaneceria durante toda a ditadura do Estado Novo, até o 31 de janeiro de 1946).
O regime político que se conformaria a partir de 1985 também seria gestado ao longo de quase uma década e passa por ao menos quatro momentos importantes: 1) a transferência do poder político, exercido até então manu militari, para as forças civis, e a derrota do partido colaboracionista com a eleição de Tancredo Neves à presidência pelo colégio eleitoral marca o fim definitivo do regime político precedente e abre o espaço para o novo; 2) o processo de reconstitucionalização, entre 1987-1988, estabeleceu o sonho nacional da Nova República (poderíamos chamá-lo de “desenvolvimentismo para a cidadania”), muito embora a queda do Muro de Berlim no ano seguinte, e o “Consenso de Washington” para a América Latina, formulado ainda em 1989 já expressasse o desacordo da nova ordem mundial que emergia em relação a este projeto; 3) as eleições presidenciais diretas, ocorridas em 1989, apresentaram ao público nacional as forças políticas que se organizavam no novo momento pátrio, bem como o inovador controle midiático-televisivo sobre os rumos das eleições; 4) a eleição de Fernando Henrique Cardoso pelo PSDB marcaria a ascensão dos partidos políticos paulistas à Presidência da República, e configuraria o duopólio tucano-petista que manteria tais partidos no poder por mais de duas décadas.
O primeiro governo FHC também marcaria a estruturação do regime político da Nova República, que toma seu nome de empréstimo ao brilhante artigo publicado em 1988 por Sérgio Henrique Hudson de Abranches, “Presidencialismo de Coalizão”. Com rigor científico e intuição filosófica, Abranches já detectava no alvorecer do novo período as suas características marcantes, tendo por esteio a percepção das desigualdades sociais e regionais brasileiras e dos conflitos ideológicos e de interesses existentes e persistentes, sinalizava para o inevitável “fracionamento partidário-parlamentar” que efetivamente verificamos desde então, que implicaria na necessidade de “grandes coalizões” para a governabilidade. Identificava também, desde então, a “forte tradição presidencialista e proporcional” (esta última, claro, no legislativo), intuindo desde logo a derrota do parlamentarismo com que sonhara nossos constituintes em 1987-1988, na consulta pública plesbicitaria de 1993 (um episódio que seguramente merece uma reflexão à parte). Conclui seu diagnóstico com a constatação da “insuficiência e inadequação do quadro institucional para a manutenção do ‘equilíbrio constitucional’”.
Pois foi, do ponto de vista do regime político da Nova República, justamente à tarefa de criar o quadro institucional (e, também, os mecanismos não-institucionais e até ilegais) de manutenção e estabilização das forças políticas pátrias que se dedicaria o primeiro governo FHC. De fato, a fragmentação partidário-parlamentar prevista por Abranches exigia uma coalizão para governar o país, e tendo em vista a estabilidade ímpar do cargo presidencial garantido pela Constituição de 1988 (que protege mais ao Presidente da República – exigindo o voto de 67% dos deputados para seu impeachment – do que a si mesma – exige apenas 60% dos votos parlamentares para a alteração do texto constitucional), a decisão pelo presidencialismo em 1993 implicou imediatamente na centralidade da figura do Presidente da República (que seguiria sendo também o chefe de governo) na busca pela coalizão. A peculiaridade do modelo de coalizão governista pensado e executado esmeradamente pelos sucessivos governos dos partidos paulistas estava na relutância em dividir poder em nome da governabilidade. Dividia-se verbas (em geral, lícitas na fonte, mas por vezes também mesadas bastante ilícitas), quando muito conferia-se cargos (e salários, e jetons), mas não poder decisório efetivo. O partido da presidência, e a figura pessoal do Presidente da República, acumulava, assim, imensa ascendência sobre todo o aparato federal (inclusive para desfazer-se dele, privatizando ou “concedendo, permissionando”), e legislava de forma voraz, especialmente por meio do instrumento das “Medidas Provisórias”.
O ponto talvez mais baixo e mais bem noticiado e documentado da conformação do regime político da Nova República viria na fixação doentia de FHC em relação à aprovação da Emenda Constitucional que passaria a permitir sua própria reeleição. Para a aprovação da EC 16/1997 seria utilizada toda sorte de artifício supostamente excepcional que, mais tarde, passaria a compor o arsenal cotidiano da Presidência da República na conformação, estabilização e manutenção das amplas alianças governistas que a “insuficiência e inadequação do quadro institucional” brasileiro não providenciara constitucional ou legalmente.
Não é de se imaginar que todo o processo de montagem de um regime político centralizado na figura da Presidência da República tenha sido organizado sem qualquer tipo de reação parlamentar. Entretanto, todas as (não muitas) tentativas do Congresso Nacional de reverter a perda de seu protagonismo e sua dependência da Presidência tiveram baixíssimo sucesso, quando não redundaram em efeitos diametralmente opostos (como os resultados da reforma da disciplina das Medidas Provisórias, a Emenda Constitucional n. 32, de 2001, podem comprovar). Correndo pela lateral, uma outra força político-institucional aos poucos se fortalecia internamente e perante a opinião pública, respondendo a uma tendência comum nos anos 1990 aos países do antigo “bloco ocidental”, mas o protagonismo do Judiciário ainda não tinha alcançado o relevo que possui na atualidade no embate das forças políticas (talvez por isso o regime político do Presidencialismo de Coalizão não guardasse espaço muito central ao Judiciário).
Para fins de justiça histórica, vale destacar que o primeiro governo Lula (2002-2006) busca realizar uma operação político-institucional inusitada. Utilizando os instrumentos do regime político já desenhado, visa, por um lado, manter o controle parlamentar exigido pelo Presidencialismo de Coalizão, e nisso dá continuidade ao período tucano. Tampouco buscará romper com os ditames da macroeconômicos alçados à classe de “ortodoxia” pelo Consenso de Washington e desde então espraiado da América Latina a praticamente todo o planeta, por força do imperialismo estadunidense plasmado nas instituições do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Mas o petista inova ao “catar os cacos” do sonho nacional de 1987-1988 e, colando-os de forma bastante seletiva com o cimento da nova ortodoxia neoliberal viria a conquistar avanços e espaços para o Brasil, interna e externamente. Mas o regime político se mantinha intacto, e viria a ser denunciado e noticiado (como se novidade petista fosse) sob a alcunha de “Mensalão”. Curiosamente, o que se buscava vender na mídia como um esquema momentâneo de compra de votos parlamentares, fazia parte, como buscamos aqui discutir, do instrumental padrão do regime político da Nova República.
O “Presidencialismo de coalizão”, conformado como regime político poucos anos após o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, daria todos os sinais de seu esgarçamento na revolta parlamentar que culminaria em um segundo impeachment, este da presidente Dilma Vana Rousseff, na constância de seu segundo mandato presidencial, encerrando a hegemonia do tucano-petismo na presidência da república brasileira. A partir dos anos de 2015-2017, uma série de mudanças políticas, institucionais, culturais, tecnológicas e legais (com inegável centralidade da importante Emenda Constitucional 97 de 2017, que reformou alguns aspectos do sistema eleitoral brasileiro), alterariam de tal forma o jogo de forças pátrio, que o instrumental do regime político vigente se tornaria incapaz de manter a estabilidade político-institucional necessária para caracterizar um regime político eficaz.
Se é possível hoje escrevermos um réquiem para a Nova República, ou mais especificamente para o regime político que viria a ser responsável por retirar o país do contexto de ingerência manu militari da política nacional, é precisamente porque a chegada de Lula ao Palácio do Planalto para um terceiro mandato, evidencia de forma cabal a ruína do regime de Presidencialismo de Coalizão. A busca, aparentemente incessante, por reproduzir desde 2023, a lógica político-institucional que permitiu a governabilidade do petista entre 2002-2010, parece desnudar a situação de instabilidade e de inadequação do instrumental daquele regime no contexto brasileiro atual.
O aroma do tempo futuro, entretanto, é incerto. Se parece claro que o contexto bastante modificado desde meados da década passada definitivamente não permite um retorno ao regime político que de alguma forma estabilizou a política institucional brasileira entre 1995 e 2016 (e é desde tal constatação, repito, que redijo este texto como réquiem), o rumo para onde a política nacional seguirá parece inteiramente incerto. Reanimam-se as vivandeiras, encastelam-se os beneficiados, apressam-se os que percebem que os ventos vindouros podem ser desfavoráveis. Mais curioso, entretanto, é o estado aparente de confusão ou desânimo em que se encontram os derrotados pelo Presidencialismo de Coalizão. Onde encontraremos as vozes capazes de enunciar expressões de memória talvez distante, como “integração nacional”, ou “desenvolvimento estatal para a cidadania”?
Todo réquiem, afinal, é um louvor à esperança de um outro tempo que ousamos sonhar seja melhor.
Post-scriptum: as mudanças que culminam no envelhecimento e na inadequação atual do regime político da Nova República, o Presidencialismo de Coalizão, passam necessariamente por algumas mudanças das quais julgamos conveniente ressaltar ao menos as seguintes: a) o esgotamento da população com a nova ortodoxia neoliberal, expressa sem muita clareza desde 2013 e ainda sem força política institucionalizada capaz de dar vazão a esta pulsão; b) a proibição (pela via de ADI no STF) do financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas, um instrumento importante de estabilização do regime político do “Presidencialismo de Coalizão”; c) a diminuição do protagonismo do meio de comunicação televisivo no controle eleitoral e a correlata ascensão dos meios de comunicação por aplicativos, que vem alterando as dinâmicas eleitorais e político-institucionais pela pulverização de notícias (falsas ou verdadeiras) e pela contraditória concentração de vieses nas chamadas “bolhas informacionais”.
- Hugo Rezende Henriques é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.