
Transformar os espaços museológicos em ferramentas didático-pedagógicas. CRÉDITOS: Divulgação
07-03-2025 às 08h48
Sérgio Augusto Vicente*
Transformar os espaços museológicos em ferramentas didático-pedagógicas: esta é uma das habilidades e competências que são, ou pelo menos deveriam ser, desenvolvidas no processo formativo de um professor, independentemente de sua área de conhecimento. Afinal de contas, os museus são espaços vivos, multi e transdisciplinares. É justamente esse o objetivo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG).
Inspirada pela leitura do livro “A danação do objeto”, de Francisco Régis Ramos, uma turma de licenciatura em História da Universidade Federal de Juiz de Fora esteve presente na instituição, no dia 26 de fevereiro, com o objetivo de elencar e discutir criticamente as múltiplas potencialidades educativas das exposições “Rememorar o Brasil – a Independência e a construção do Estado-Nação” e “Fios de Memória – a formação das coleções do Museu Mariano Procópio”. Preocupados com o papel educativo do Museu Mariano Procópio, os historiadores Rosane Carmanini Ferraz, Priscila da Costa Pinheiro e Sérgio Augusto Vicente, que também integram a equipe curatorial das mencionadas exposições, além de abordarem os desafios práticos enfrentados na concepção e montagem do circuito expositivo, chamaram atenção para os desafios dos museus históricos na atualidade, como a desconstrução de uma história única, positivista e ancorada em narrativas fechadas aos tensionamentos, conflitos, ambiguidades, contradições, mudanças, permanências, pluralismo cultural e diálogos entre presente e passado. Todas essas reflexões, que, desde 2017, já vinham sendo debatidas criticamente através de uma literatura e de uma historiografia muito potentes, no minicurso “(Re)pensando os museus históricos na contemporaneidade”, por eles ministrado e ofertado a professores das redes municipal, estadual e particular de ensino de Juiz de Fora, foram novamente mobilizadas nessa visita com os futuros professores de História.
Esse encontro é fruto de uma parceria que começa a ser firmada entre os historiadores do Museu Mariano Procópio e a professora da Faculdade de Educação da UFJF, Dra. Yara Cristina Alvim, que já esteve a frente do Departamento de Difusão Cultural do MMP entre os anos 2010 e 2011. O objetivo da professora é oferecer ferramentas teórico-metodológicas que, aplicadas ao universo das exposições, possam promover o chamado letramento museal, ou seja, o desenvolvimento de habilidades e competências imprescindíveis à leitura crítica dos objetos e das narrativas construídas a partir do ato de expô-los nos mais variados contextos e sob os mais diversos discursos e intencionalidades. Nesse sentido, todo o esforço docente de trabalhar os museus como ferramentas educativas deve ser traduzido para a desnaturalização de olhares cristalizados e aparentemente “inocentes” em qualquer exposição, redirecionando o foco exclusivo sobre o objeto para as possíveis leituras formuladas sobre ele a partir da interação com o espaço expositivo, os textos curatoriais e os demais objetos.
Nesse sentido, as falas dos curadores se mostraram muito importantes, na medida em que foram colocadas em discussão diversas escolhas curatoriais responsáveis por ressignificar e atribuir outros sentidos possíveis aos objetos da instituição, para além dos atribuídos por uma tradição arraigada e cristalizada no circuito expositivo de antes do fechamento dos prédios históricos aos públicos. A presença de vitrines e plotagens que conferem destaque a personagens silenciados e subalternizados pela história oficial é um exemplo disso. A ênfase no papel ativo das mulheres, negros e indígenas na nova expografia logo chamou a atenção dos graduandos, bem como a abordagem da história e da cultura dos afro-descendentes para além da escravidão e do eurocêntrico olhar da elite oitocentista. Não menos importante foi a introdução de objetos alusivos a fatos sintomáticos dos tensionamentos, mudanças e permanências presentes no processo de transição do regime monárquico para o republicano, bem como a relação entre presente e passado na abordagem das “feridas” e mazelas ainda presentes em nossa sociedade, e que tornam o processo de Independência brasileiro ainda inconcluso. Também despertou interesse o contraponto entre a representação oficial de D. Pedro II e a sua representação pelo viés humorístico das caricaturas e das charges.
Em linhas gerais, os futuros professores de História tiveram a oportunidade de estabelecer uma análise comparativa entre os circuitos do pré-fechamento e do pós-reabertura, identificando duas mudanças estruturais bastante emblemáticas e explícitas, quais sejam: primeiramente, a abordagem da Independência do Brasil como um processo de longa duração e eivado de conflitos, incertezas, indefinições, contradições e ambivalências. Pela primeira vez, a estrutura narrativa, sobretudo a da exposição “Fios de Memória”, subverte o sentido de uma história linear e tripartite do Brasil, dividida em Colônia, Império e República, adotando em seu lugar recortes temáticos que possibilitam ler algumas pinturas históricas – como as telas dos bandeirantes – não como ilustrativas do Brasil-Colônia, mas como objetos integrantes da coleção de arte brasileira de Alfredo Ferreira Lage, convidando os públicos a refletirem criticamente sobre o contexto de produção dessas representações, desnaturalizando o seu papel pedagógico tradicional como reprodução fidedigna de uma pretensa verdade aprisionada no passado interpretado pelo olhar do artista. Em segundo lugar, mas não menos importante, os graduandos puderam perceber o movimento dos curadores das novas exposições em inserir a história do próprio Museu Mariano Procópio e das diferentes facetas do colecionismo de Alfredo Lage nas narrativas, como uma espécie de olhar psicanalítico, no qual a instituição tenta perscrutar a sua própria imagem diante do espelho, questionando-se sobre o seu papel na atualidade e sobre os seus desafios futuros, como espaço vivo e potente na construção dialógica de conhecimentos, saberes e identidades plurais, sem ao mesmo tempo abandonar o enorme legado deixado pelo fundador Alfredo Ferreira Lage.
Sabe-se que a descolonização, a democratização e a transformação dos museus em “fóruns” de debates (e não apenas “templos” dedicados à contemplação, como afirma Francisco Régis em “A danação do objeto”), ou em “laboratório de memórias” (segundo Ulpiano Bezerra de Meneses) não é tarefa fácil e com “receita de bolo”. Além de implicar negociações entre diferentes projetos de memória, concepções de História e de museus, essa é uma missão que, assim como tudo que se inscreve no plano da cultura e das mentalidades, não acontece da noite para o dia, mas na média e na longa duração. Todavia, como sabemos, tudo começa pelos primeiros passos.
Ao final da aula de didática do ensino de História “no” e “do” Museu Mariano Procópio, todos chegaram à conclusão de que eficientes estratégias expográficas foram aplicadas pelos curadores, a partir da realidade e das condições disponíveis no contexto de reabertura, e que enormes avanços já aconteceram, estão acontecendo e ainda estão por acontecer, abrindo novos horizontes de expectativas. Tudo isso, é claro, não prescinde de um sistemático e permanente programa de formação de professores capaz de não apenas convidá-los a levar os discentes aos museus, mas de oferecer ferramentas necessárias à utilização desses equipamentos culturais como espaços vinculados a objetivos curriculares que vão além do lazer e do entretenimento.
* Sérgio Augusto Vicente é professor de História e historiador. Graduado, Mestre e Doutor em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG)