
Como posso ter sido aquela menina, e hoje desfrutar isso somente na minha memória? Raras vezes me vêm lampejos daquela felicidade.
11-02-2025 às 09h05
Regina da Cruz Alvarenga*
Eu fui menina no bairro de São Mateus, entre 1953 e 1960, na cidade mineira de Juiz de Fora. A vida era muito diferente da realidade de hoje, em 2025, cerca de sessenta e cinco anos depois.
As crianças ficavam muito mais tempo fora de casa do que dentro. Nos dias de agora, a vida é dentro de quatro paredes, ou então as crianças fazem atividades extras e pagas, para que possam estar convivendo com colegas e aprendendo. Nas periferias, onde haveria mais espaço para a brincadeira na rua, o perigo faz com que os pais mantenham os filhos fora da rua. Há raras exceções – em geral, é isso que percebo que vem acontecendo. Crianças no computador e celular.
As famílias moravam em casas, as crianças brincavam no jardim, assentavam-se nos muros e varandas, corriam muito, brincavam de pique ou de roda, olhavam o céu à noite.
A casa dessa menina – que por incrível que pareça eu fui – era a última da rua. Com as amigas, eu escalava o “degrau” do lado de fora da janela, equilibrando e indo até a outra janela, literalmente “abraçando” a casa.
Ao lado da minha casa havia um campo que era mato e foi capinado para os meninos jogarem futebol.
Havia cabritos por perto, o dono deixava que comessem grama por ali, já que, sendo a última casa da rua, o que não faltava era terra e capim. De vez em quando um cavalo pastava, não se sabia de quem era.
Quero “viajar” mais naquela vida antiga, mas natural e cheia de liberdade, tentando provar gostosas lembranças, a partir do olhar de uma criança que saboreia a vida.
Naquela mágica época da infância, passava por ali um córrego de águas límpidas – mas hoje em dia, que triste as pobres águas poluídas! Ar puro, cheiro de mato quando chovia, flores no jardim – as mais lindas eram as margaridas.
Já estou envelhecendo – busco voltar ao coração daquela menina que subia morro, brincava na terra, de casinha…mas penso que esta tristeza nostálgica talvez me transforme numa velha presa no tempo antigo e cega e surda para a vida presente.
Meus amigos, convenhamos, muito daquela vida se perdeu – o som das águas, o reluzir das estrelas sob o fundo profundo da abóbada celeste, o brilho da lua, as tanajuras no verão, os vagalumes a cintilar, as visitas das chuvas que a criança ouvia com espanto o agradável barulhar dos pingos nas janelas, depois fazer barquinhos de papel e colocar na água correndo entre a rua e o passeio. Embora seja difícil de acreditar, eu fui essa menina.
Dentro de casa, gostava de esconder-me com um volume da coleção Tesouro da Juventude no colo, a ler contos. A mãe um dia se assustou vendo-me: “Que isso menina, sentada no chão!”
Ia sempre brincar no morro próximo com as amigas – um dia fui salva por uma delas. Um cavalo doido – que andava com um sininho pendurado no pescoço – veio descendo o morro em disparada. Minha amiga me empurrou, gritando “Santa Maria Goretti”, assim me salvando.
Como posso ter sido aquela menina, e hoje desfrutar isso somente na minha memória? Raras vezes me vêm lampejos daquela felicidade, rápidos flashes de Vida, uma vida perdida e esquecida, mas que teima em permanecer se ocultando dentro de mim.
*Regina da Cruz Alvarenga é escritora Juiz-forana, Graduada em Letras – UFJF Pós-graduada em Tradução – UFJF
Publicou o livro “Caminhos de Mim”, com patrocínio do Programa Cultural Murilo Mendes, Prefeitura de
Juiz de Fora.